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«O Nariz, um conto do absurdo, claro, mas de um absurdo de dois bicos: age sobre o trivial, mas também o trivial age sobre ele, tornando-o estranhamente verosímil. Portanto, nada de fantasias! Podemos fartar-nos de estabelecer paralelos com os antecedentes românticos em que se perdia magicamente qualquer coisa: ora o coração, ora a sombra, ou então era o nariz que crescia—mas sentimos sempre uma diferença nítida: em Gógol não encontramos o ambiente de enigma: a suposição dos efeitos de magia como causa do acontecimento é rejeitada de imediato (a carta da “vítima” com as acusações balbuciantes de bruxaria, em que nem ele próprio acredita, e a carta de resposta da acusada que nem sequer percebeu as insinuações e que por isso lhes dá uma interpretação muito prosaica e, como tal, cómica). Nada de magias! Esta, aliás, é uma das particularidades da escrita russa, a partir de Púchkin: por mais misticismos, crenças, superstições, por mais almas que andem no ar, o escritor tem sempre os pés assentes na terra e alimenta dela a sua inspiração.
Iúri Mann (O Sistema Poético de Gogol, Moscovo, 1978) escreve que as ligações genéticas dos contos de Gógol com a literatura do romantismo (Hofmann, Chamisso) já estão suficientemente estudadas pela crítica. O que faltava era descobrir a mudança fundamental que esta tradição sofreu em Gógol. O motivo da perda pelo herói de uma parte do seu Eu, seja corporal, seja espiritual, estava ligado, na tradição romântica, com a acção de forças sobrenaturais. Em O Nariz não existe portador nem personificação da força não-real. Não se descortina culpado e, pelos vistos, não existe.
Existe apenas facto. E também a atitude das personagens para com o facto. Não há culpado, não há explicação do fenómeno. O leitor espera involuntariamente qualquer esclarecimento — mas o narrador afasta-se, põe a máscara do “censor” e prega ao leitor uma partida (“não percebo absolutamente nada”, diz) e, ainda por cima, declara que “acontecem coisas destas no mundo—raramente, mas acontecem”; depois sai de cena, deixando o leitor de mãos a abanar…»
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Um exercício em suspensão de descrença. Um pouco como a Metamorfose de Kafka, o fantasioso aqui acontece sem causa ou explicação visível. Apenas as consequências do ocorrido são relevantes, o que dá aos acontecimentos da trama uma luz que só o realismo fantástico consegue trazer.
Mesmo com a atmosfera regada a hierarquismo russo, a fluidez do nariz de objeto a duplo a prêmio, ou a nova visão de mundo do protagonista após reganhar sua apreciação à vida, o ponto alto da minha leitura se deu perto do fim, com a crítica de Gogol à veracidade da própria história, apesar de que “incidentes semelhantes acontecem no mundo; é raro, mas acontecem”.
Além disso, a edição da Antofagica foi, como sempre, de grande ajuda para uma melhor apreciação da obra.