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Lulinha você é diva icônica. Aos 23 anos, em pleno 1940, a moça (que pelo que ouvi era bissexual e inclusiva) fez um livro só com personagens marginalizados no Sul dos EUA.
A literatura gótica do sul dos EUA nada tem a ver com a imagem inicial que a gente pensa no estereótipo do gótico de hoje ou na arquitetura gótica, mas sim focam na tensão racial, no aspecto da escravidão, no grotesco e no horror. Não necessariamente serão como o terror gótico de Frankenstein ou Poe, por exemplo, e é nesse patamar que se encaixa o romance.
Situado em 38-39 numa pequena cidade do Sul, o livro tira seu título de um poema que, apropriadamente, fala sobre alguém que permanece obcecado pela música apesar de incapaz de interfacear com ela. Essa sensação é presente não só em Mick Kelly, ao fim de seu arco de desenvolvimento, mas também na própria autora, que inicialmente pretendia ser musicista mas após um período de doença, se fascina pela literatura e se afasta da música.
O livro gira em torno de John Singer, um surdo, e de outros quatro personagens que a ele se ligam: Jake Blount, um alcoólatra marxista revoltado e forasteiro na cidade; Benedict Copeland, um médico negro obcecado com salvar os negros de seu destino através da educação e disciplina; Mick Kelly, a adolescente rebelde filha da pobre família Kelly; Biff Brannon, o dono do New York Café e recém viúvo.
O livro alterna entre capítulos, sempre na terceira pessoa, mas que nos apresentam a perspectiva de cada um dos 5 personagens. Assim, logo de cara, nos é estabelecido que Singer tem apenas um grande amigo, o surdo grego Antonapoulos, e com ele se comunica fervorosamente sem ter do amigo grandes respostas. Antonapoulos começa a enlouquecer, acaba internado por seu parente e Singer, sozinho, se muda para um quarto alugado na pensão dos Kelly. Assim, ele é posto em contato com Mick, que desenvolve por ele uma paixonite e passa a ir se confidenciar com ele. Da mesma forma, quando Singer se torna sozinho no mundo, ele passa a frequentar o New York Café, onde trava conhecimento com Blount após resgatá-lo de um de seus acessos. Blount é obcecado em diferenciar o mundo entre aqueles que sabem e os que não sabem, isto é, os que entendem sua condição no mundo capitalista e sabem que são explorados e os que não. Convicto de que por trás da expressão serena de Singer e sua gentileza há um profundo entendimento, também ele passa a ir pra lá e despejar todos os seus problemas no surdo. Copeland passa a conhecer Singer por que queria conselhos para um jovem paciente seu que também é surdo. Brannon, por fim, passa a visitá-lo após a morte de sua mulher.
O interessante dessa relação onde todos projetam no mudo as suas necessidades, a maioria precisando quase confessar-se para alguém que não pode responder, e que compreende-os apenas parcialmente via leitura labial, é que isto é exatamente a relação egoísta que Singer tinha com seu amigo. Ele fuzilava o Antonapoulos unilateralmente, sem nunca ter muita certeza se o amigo o entendia ou sequer prestava atenção em algo que não fosse bebida ou comida, e se satisfazia com os seus ocasionais sorrisos. Talvez não à toa Singer adota o mesmo modus operandi de esboçar entendimento e sorrir para todos os seus interlocutores e é elevado ao mesmo patamar que colocava o amigo.
Naturalmente, do título à estrutura do romance, vemos o tema da solidão repetido, nas suas mais diversas nuances. Todos os personagens são, de uma forma ou outra, marginalizados, e, por isso, solitários em seus núcleos. Blount não tem amigos que não Singer, seja por ser novo na cidade, por ser marxista ou por ser extremamente raivoso. Mesmo compartilhando de mais semelhanças que diferenças em seu entendimento político, ele não consegue tornar-se amigo de Copeland quando eles acabam interagindo, e na realidade acaba brigando fisicamente com ele.
O doutor é evidentemente muito diferente da comunidade de negros pobres com a qual convive, tanto por sua situação econômica muito melhor quanto por seu nível educacional. Isso é notável até na forma de se expressar. Não sei como era no original, mas na tradução os personagens negros falam sempre com algum erro de concordância, exceto por ele. Ele é mais rebuscado, culto, erudito, e tinha como sonho que seus filhos promovessem o avanço dos negros, ocupando cargos importantes. Ele evidentemente falha, e torna-se amargurado, raivoso e distante dos filhos, que não o entendem e assumiram os lugares padrões que eram permitidos aos negros na época. Apesar de sua enorme filantropia e tentativa de fazer ‘seu povo entender' (que nem Blount), tudo que ele vê é miséria ou violência. No concurso de redações para crianças falarem sobre avançar a causa racial, a melhor redação é a de um rapaz que odeia os brancos e advoga por violência como solução após sua irmã ter sido estuprada por brancos. O caminho da revolução mediante à violência era repudiado por Copeland apesar de seus surtos de raiva, mas este parece ser o único caminho viável para a juventude, conforme testemunhamos na briga racial que se desencadeia no parque de diversões no qual trabalha Blount. Essa briga, inclusive, acaba terminando com a morte do jovem que ganhou o concurso, mas isso acaba não repercutindo tanto quanto achei que iria, fica só uma mensagem implícita.
Mick é uma adolescente com traços masculinos, revoltada e fascinada por música. É sob seu ponto de vista que se passam os momentos mais assombrosos do livro, como toda a cena com Baby Wilson. Seu irmão, Bubber/George, era meio apaixonado na tal Baby Wilson, que era sobrinha de Biff e vivia treinada para ser uma modelo ou atriz desde pequena. Um belo dia, as crianças estão brincando com a arma de um deles e Bubber, ignorado por Baby, acaba disparando contra ela. É chocante, de verdade. O menino foge para a casa na árvore e Mick decide que, para aprender uma lição, deveria dizer-lhe que ele seria preso, só pra que ele sofresse um pouco e depois ela ia buscá-lo. Ele na verdade acaba fugindo para a estrada fora da cidade e é pego depois. Bubber nunca mais será o mesmo, e nem sua família, agora perpetuamente endividada para pagar os custos de tratamento da Baby Wilson, que consegue se recuperar mas tem sua carreira paralisada por conta dos ferimentos na cabeça e a falta de cabelo. A partir daí, a família vai se desintegrando financeiramente e isso culmina com Mick se sentindo meio obrigada a começar a trabalhar logo antes dos 16 em um emprego de tempo integral enquanto ainda está na escola. Depois da perda da sua virgindade para Henry, um vizinho seu que foge da cidade depois desse dia, é isso que sacramenta a sua conversão forçada em mais uma adulta esmagada pelo sistema. Mick, perpetuamente exausta pelo trabalho, não consegue mais acessar seus dons e talentos musicais e nem seu mundo interior no qual ouvia e compunha melodias. Seu fascínio pela música, que a guiava a ir ouvir o rádio nas casas vizinhas até que Singer compra um rádio para seu quarto (sim, só pra ela, fofão), agora é um dom perdido para um salário de dez dólares semanais.
Biff é outro personagem indiscutivelmente queer. Impotente e num casamento onde o amor parece ter acabado, ele é um cara meio caladão, na dele, um pouco esquisito. Após a morte da sua esposa, vemos se revelar com sutileza (1940, afinal) um claro conflito seu em relação à sua sexualidade ou expressão de gênero. Ele passa a usar o anel de casamento de sua mãe e as loções da esposa, e nutre sentimentos maternais e conflitantes em relação à Mick e Baby Wilson. É um pouco perturbador como isso se desenrola porque tem momentos em que não sabemos se ele quer proteger Mick como mãe ou se ele se sente atraído por ela. Não sei se o objetivo era a ambiguidade ou o quê, mas que me deixou nervoso que fosse dar uma merda me deixou. Felizmente, fica só nisso. É interessante que ele é um dos poucos que entendia Singer como sendo uma pessoa normal, e observava que as pessoas colavam no mudo como um Deus. Talvez por isso é que, quando Singer se mata após descobrir a morte de Antonapoulos, é ele quem fica encarregado de fazer os arranjos funerários.
No fim, ficamos nisso: Singer se mata, a vida de todo mundo vai pro caralho e a cidade parece se sedimentar naquele núcleo de pobreza, miséria e racismo que já nos era familiar. A solidão não se resolve, Copeland, já doente e tendo apanhado por um triste incidente com a prisão de seu filho, termina indo morar com o sogro numa fazenda, isolado e cabisbaixo. Blount vai pra outro lugar depois da já citada briga no parque, na qual ele se envolve. Biff continua na cidade, meio perdidão em seu café que não vai bem, e de Mick já falamos.
É um excelente livro, e quero ler mais da autora inclusive. É daqueles livros que eu conheci pela TAG e sou muito grato e quase quero voltar a assinar, não fosse a falta de espaço na estante.
Escrevo aqui como forma de me lembrar posteriormente do que pensei ou senti ao ler determinado livro, especialmente porque minha memória me falha pra cacete. Posto isso, eu realmente não sei se é uma ideia muito burra entender que livros sem pré-requisitos explícitos deveriam se sustentar sem material suplementar. Um livro sobre o sofrimento da Segunda Guerra Mundial claramente exige que eu saiba de alguns fatos gerais do evento, mas nada me deixou claro que eu precisaria de algum material extra pra ler 2666.
Possivelmente me enganei. 2666 foi o primeiro livro de Bolaño que eu li, mas talvez não seja representativo do estilo do cara, porque foi publicado postumamente e não estava totalmente finalizado. Dizem as notas à edição que eu tenho que o livro estava basicamente pronto, e ele só ia refinar. Só que as mesmas notas dizem que o livro tinha um personagem que se apresentaria como narrador, e que, ao fim, este personagem se despedia. Não tem nem sinal disso no livro, o que me leva a crer que faltava muito mais coisa do que se dá a entender ao leitor desavisado. Só por isso, já sinto que o livro não se aguenta sozinho, e há certa malícia em não avisar isto de bate-pronto. Culpa não do escritor e da obra em si, mas representa o problema que tive com este enorme texto.
O livro é bom, entretém, e há uma bela circularidade na narrativa e em como suas cinco partes se conectam. Só que suas partes tem uma densidade textual tão grande, com vários personagens bem desenhados, que comecei a simplesmente ir me perdendo.
Entendo que o objetivo da quarta parte, sobre os crimes, era de usar Santa Teresa como metáfora para a cidade de Juaréz, no México, e dessensibilizar o leitor. A forma de Bolaño apagar a invisibilidade dos crimes, perante a polícia local, seja ela ficcional ou real, foi a de detalhar cada assassinato, cada investigação, cada vítima, restaurando-lhes a identidade e a personalidade, mas ao mesmo tempo com um ritmo e um tom tais que acabamos nos acostumando à barbárie que ele apresenta. Isso funciona, e, rapidamente, eu senti que eu estava indiferente à coisas que me perturbariam se lidas isoladamente em qualquer outro livro, e é mérito da obra não só atingir esse efeito mas gerar essa contemplação no leitor. Nada mais justo para um livro que tem literatura e violência como seus principais temas (ou assim eu entendi). Só que a minha indiferença infelizmente não se restringiu à quarta parte. Pelo que entendo, a abertura do livro, com suas histórias que não parecem levar diretamente para parte alguma na narrativa mas tem propósito de levantar questionamentos ou sentimentos acabou me cansando. Descrições exaustivas foram se tornando tão comuns, seja de personagens irrelevantes ou metáforas intrincadas, que eu já não sabia o que valia a pena guardar. As histórias isoladas são legais, e talvez até funcionariam bem como livros separados, como se diz que era o plano do escritor. O que justificaria que elas englobassem o mesmo livro é que o projeto original de Bolaño era esse, e que isolá-las só servia para que ele o terminasse mais rapidamente e pudesse garantir mais conforto à sua família, uma vez que estava morrendo. Repito: o livro não foi acabado, e as notas dele revelam que faltavam partes cruciais. Talvez o estilo aberto do livro, que só te leva à reflexão se você tiver essa paciência que me falta, seja o normal de Bolaño, mas não tô nem um pouco convencido de que necessariamente isso ia se produzir nesse livro. O livro abunda de referências à eventos que acabam nunca transpirando, e parece existir uma história não terminada. Isso foi frustrante.
Talvez toda a minha indiferença à esse livro seja porque foi o primeiro livro que li durante essa quarentena. Talvez seja porque os temas literários não me são tão familiares e por isso o livro perde parte da graça. A intriga romântica entre os críticos, na primeira parte, e toda a mediocridade que Bolaño passa da classe que é incapaz de criar e se embrenha apenas em picuinhas vãs é divertida, e talvez até uma tirada dele pra crítica literária, que não sei como o tratava. A segunda parte não me divertiu muito, é legal ver a vida do Amalfitano em perigo, sua filha em perigo e sua única reação ser a de pendurar a porra dum livro no varal. O racismo oculto com Fate e a indiferença de todos com a história dos assassinatos de Santa Teresa, etc, o livro é repleto de várias partes que individualmente funcionam bem mas o todo parece desconjuntado. O problema todo é que definitivamente faltou coisa. O suposto assassino, Haas, é sobrinho de Hans/Archimboldi, e diz que um gigante está vindo. Archimboldi vai pro México e... nada. Nada acontece, a narrativa acaba aí. Os assassinatos são claramente obras de múltiplas pessoas, possivelmente os filhos dos ricos da cidade, que dirigem Peregrinos pretos, carros estes vistos levando várias das vítimas. Pode ser que sim, pode ser que não. Foi uma experiência legal, mas sobrou e faltou coisa demais.
Há uma chance de que o timing de leitura desse livro não tenha sido dos melhores. As primeiras semanas de Fevereiro trouxeram uma certa falta de foco e noites mal dormidas, possivelmente por desequilíbrio da tireóide. Isso, acoplado à minha incapacidade de ter qualquer espécie de guia próprio de personagens, certamente não ajudou. É um livro russo, daqueles bem massivos com vários personagens de nomes facilmente confundíveis, e tentar ler ele no seco é muito difícil. Por mais que eu entenda como patronímicos funcionam, não os torna mais fáceis de memorizar, e aqui cabe até uma tese sobre como nomes em línguas que não somos absolutamente fluentes talvez sejam mais fáceis de misturar? Eu sinto a mesma coisa vendo coisas em japonês, e eu sinto que pro público russo é mais suave (até porque eles sabem que Tânia = Tatiana).
De todo modo, Doutor Jivago foi publicado nos anos 50 na Itália, porque a União Soviética enxergou no livro uma CLARÍSSIMA afronta aos ideais soviéticos. O livro foi parte de todo um cabo de guerra ideológico, sendo distribuído pela CIA e gerando consequências graves para o autor, que tentou recusar o Nobel que recebeu em 58. Consta em minha edição que, apesar de publicado tardiamente e citar a Segunda Guerra, o livro na verdade foi sendo gestado e escrito já nos 20-30, e acaba sendo ele mesmo uma enorme epopéia da Revolução Russa. O livro pega desde a guerra russo-japonesa em 1904, passando pela revolução, guerra civil, expurgos, stalinismo, e tudo isso com uma visão que se não era claramente crítica como fez Orwell, no mínimo não fazia questão de esconder os destroços deixados no caminho. O próprio protagonista, inicialmente simpático aos bolcheviques e entusiasmado com a revolução, dela torna-se grande vítima, sendo forçado a mudar-se, preso, feito de prisioneiro dos partisans e por aí vai. Aí que entra toda a óbvia vontade ocidental de instrumentalizar o livro: era um russo falando mal da URSS com uma ampla visão de todo o processo revolucionário. A violência soviética é claramente exposta, e a tendência da extremização de muitos dos revolucionários, para então serem descartados ao regime, é de fato muito marcante. O hindsight óbvio que temos de onde tudo deságua não nos impede de simpatizamos com o entusiasmo inicial e posteriormente nos compadecermos conforme o livro torna-se uma sucessão de tragédias e labirintos sangrentos.
Ainda assim, sem esse enorme contexto histórico, temos uma trama que depende demasiadamente de coincidências. Fulanos que se reencontram em cidades completamente aleatórias, no meio dos deslocamentos, e vão morar na mesma casa que sicrano morou há 30 anos, e isso foi uma grande crítica à Pasternak. Isso pode ter sido uma espécie de contraponto ao realismo socialista que era o estilo meio que imposto à época, e enfatiza o caos do período, mas ainda assim é um pouco DEMAIS pra mim. A vastidão da Rússia deve funcionar bem nas descrições, mas eu infelizmente sou um ser de limitadíssima imagética mental e não consigo visualizar terreno descrito. Juro que tento. E ao mesmo tempo eu senti uma certa secura na descrição dos personagens em si, em sua psicologia. Senti que muito era dito sobre quem eles eram sem mostrar, mesmo Jivago e seus pensamentos originais. Curioso pra ver como fica o filme nisso, que parece ter focado demais na história de amor dele e sua segunda mulher, Lara, que acaba servindo com ele na guerra e era mulher de seu amigo/conhecido Pacha, que acaba ele virando uma lenda viva da revolução e afins. Ou eu que, como mencionei, li esse troço na época errada e não fui embebido pelo livro como outros. Vai saber.
É um absurdo quão mal a tradução matou esse título, sinceramente. Tipo, a ideia do título ‘A Visit from the Goon Squad' é vir da frase do roqueiro decadente, analisando o efeito negativo do tempo, falando que ‘time is a such a goon', palavra essa que hoje se refere à capangas e coisa do tipo mas antes falava do capanga armado que vinha acabar com movimentos sindicais.
Esse título ornava muito melhor o tema central desse livro, que não chega a ser uma história só nem uma coletânea, mas tipo um caleidoscópio de histórias que se tangenciam com os mesmos personagens ao longo do tempo. Não é TÃO TÃO diferente do Vida: Modo de Usar, do Perec, apesar de ninguém na crítica ter citado isso (na verdade, eu me sinto convicto em comparar justamente porque muito elogiaram a originalidade desse estilo). Aliás, a originalidade que sim vale elogiar mas que como tudo provavelmente já foi feita antes só que pior, vem dos capítulos com formatos diversos: a narrativa em segunda pessoa, o capítulo em PPT, etc. Senti falta de mais DISSO, que foi onde realmente o texto encaixou com a prosa, digamos.
Não que o livro não seja bom, mas eu estou disposto a apostar que boa parte do efeito que teve foi a infeliz coincidência de ser esse o livro que estava finalizando quando meu avô veio a falecer. É estranho que, ao andar pela aleia do cemitério depois de chorar na reza final, eu pensei um pouco na ideia desse livro? A metáfora que me veio, porém, foi bem mais brutal: o tempo dilacera nossas entranhas, e paira sobre nós como um miasma tóxico, sempre se aproximando.
Todos os personagens do livro são, de alguma forma, vencidos pelo tempo, e sofrem seus efeitos. Bosco perde a fama, engorda, torna-se patético, e tentando ao menos deixar uma última memória, escolhe fazer uma turnê suicida, mas acaba sobrevivendo e se perdendo pro tempo. Mesmo os que encontram alguma felicidade parecem não estar propriamente satisfeitos com o rumo que suas vidas tomaram, e é uma felicidade frágil, ameaçada. O livro faz um loop legal, começando com a Sasha, a assistente cleptomaníaca de Benny, produtor musical. O primeiro capítulo entrecorta uma sessão sua de terapia com um encontro que teve com Alex, durante o qual ela acaba roubando e devolvendo uma carteira. O capítulo final trata de Alex se reencontrando com Benny e indo atrás de Sasha, após lembrar dela inoportunamente. Sua vida é meio merda, o mundo ficou pior por causa do aquecimento global (aliás, essa breve descrição distópica parece infelizmente bem verossímil) e no horizonte, um prédio se ergue pra tapar a pouca luz e sol que ele desfruta em seu pequeno apê. O tempo urge e vai destroçar ele também. Só que a inexorabilidade do tempo não é um fato novo para nenhum ser humano, por mais que o tempo e a sua percepção não sejam triviais pra nossa espécie. De fato, os 5 meses que vivi em Israel voaram, ao mesmo tempo que alguns dias se arrastam, mas estamos todos cientes, ao menos em teoria, do fato de que a passagem do tempo é inevitável. O que talvez esse livro tenha a nos dizer é quanto do que fazemos a respeito disso pode nos preservar, ou, em alternativa, nos destruir.
Não sei se amanhã terei orgulho do que fiz enquanto o tempo passava, e talvez a grande armadilha seja o quão inevitável é o desespero que temos quando nos damos conta de que ele passou. O que sei é quão rápido o tempo pode dilacerar e nos tirar quem amamos. Deixei meu Rio de Janeiro indignado com a onda de pobreza que vinha, mas mesmo eu, pessimista, jamais imaginei encontrar algo tão putrefato como encontrei. As ruas estão apinhadas de gente triste, com fome, ainda mais do que no meio de 2021. O clima é tenso, e há uma sensação iminente de desarmonia, de calamidade. Tudo está caro, caríssimo, e a alegria que um dia nos caracterizou se sente. O tempo passou e os dias felizes, de glória, ficaram pra trás. Israel ainda não é minha casa, propriamente dita, e eu mal tenho um teto decente lá. E agora, o lugar que eu um dia chamei de casa parece uma tragédia em câmera lenta. O tempo me roubou meu avô, e agora a minha casa. “Time's a goon, right?”
Mas hei de sobreviver, tal qual meu finado avô sobreviveu ao campo de trabalhos na Sibéria, aos cinco anos.