OK, allons-y; je essaye d'écrire dans mon ordinateur, avec les suggestions de texte de Windows. Je ne sais pas si c'est la meilleure idée, mais utiliser seulement mon portable et ne pas faire l'effort cognitive de penser normalement en français m'effrayait.
Donc c'est un livre originalement français, écrit pour le violoniste et écrivaine française Leonor de Récondo qui, c'est important de dire avant, est cis. Point Cardinal raconte l'histoire de Laurent, un gars de environ 40 ans qui vit avec sa femme, Solange, et ses filles, Thomas et Claire. Depuis longues années d'une vie sans grands problèmes, Laurent observe qu'il y a eu toujours un désir : sortir du placard comme femme.
Tout ça vie, il a été réprimé son fascination pour le corps féminin. Avec sa femme, il a transformé son désir de changer son propre sexe pour l'adoration à Solange. Mais, comme toujours, ça n'a été qu'un subterfuge temporaire. Il commence alors à s'habiller comme femme secrètement, en lieu de faire du vélo comme il dit à sa famille. Lauren adopte une nouvelle personnalité, Mathilda, et c'est elle qui va avec d'autres femmes trans à danser dans Zanzi bar. Avec le soutien de Cynthia son amie qui a été aussi dans la même situation, Lauren se adapte à une double vie, mais ce n'est pas soutenable. Il s'habille comme Mathilda aussi chez lui quand il était seul dans un weekend, il est fasciné avec les lingeries féminines. Sa perruque est découverte pour Solange, et, après, le secret entier.
Je connais pas suffisamment l'expérience d'être trans, et je crois vraiment qui l'auteure a parlé avec des femmes trans. Mais aussi je comprends les critiques qui j'ai lu de les personnes trans en general, qui observent qui le aspect fétichiste de Laurent avec des lingeries ressemble un stéréotype, un caricature quand même. L'expérience brasilienne avec la transidentité est, peut-être, different, mais ici nous entendons parler des hommes cis qui aiment porter des sous-vêtements de femme, ou qui aiment faire c'est que ils appellent de cross-dress, et c'est ne dire rien sur leur identité de genre. Néanmoins, j'aussi comprends qui parle de ce sujet en 2017 dans un livre oblige la écrivaine a adopter des manières plus directes et connues pour décrire l'expérience trans.
Mais les critiques sur le égoïsme de Laurent sont justes. Quelques jours après la découverte de Solange, il décide de raconter à ses enfants qu'il était, en fait, une femme. Thomas s'énerve beaucoup, et même Solange, qui lui soutiendra après, n'aime pas qu'il fasse son coming out sans le discuter. Pendant tout le livre, nous voyons le POV de Laurent, et c'est claire qui même quand il s'assume completement comme Lauren, il aime Solange. Por quoi il prendre tout ses decisions seule, sans discussion, ou meme sans un avis propre? J'aime son courage, et naturellement qui Solange n'est là pour autoriser ou non la transition, la chirurgie, mais... c'est dure aussi de observé les stéréotypes de genre : Solange est le premier responsable pour maintenir la famille, pour laver les plats, etc. Il y a des motivations psychologiques pour cette caractérisation, mais avons-nous besoin de ça ?
C'est mon premier livre “sur” le transidentité, et j'aimerai de lire des autres. Honnêtement, mes critiques vient d'une façon intellectuel, pas que j'ai aimé lire le livre (j'ai lui lu en moins d'une semaine). Point Cardinal a été très bien reçu en France, ayant reçu le Prix du Roman des Étudiants, et il faut féliciter l'auteure pour la poésie dans les phrases simples, et aussi pour n'avoir pas écrit une tragédie, le plus commun peur les histoires LGBT.
https://docs.google.com/document/d/1nNlFsWvXUe-hlD7rjDEFjvp6zDvitiplRBTOmnrSVhk/edit
Lulinha você é diva icônica. Aos 23 anos, em pleno 1940, a moça (que pelo que ouvi era bissexual e inclusiva) fez um livro só com personagens marginalizados no Sul dos EUA.
A literatura gótica do sul dos EUA nada tem a ver com a imagem inicial que a gente pensa no estereótipo do gótico de hoje ou na arquitetura gótica, mas sim focam na tensão racial, no aspecto da escravidão, no grotesco e no horror. Não necessariamente serão como o terror gótico de Frankenstein ou Poe, por exemplo, e é nesse patamar que se encaixa o romance.
Situado em 38-39 numa pequena cidade do Sul, o livro tira seu título de um poema que, apropriadamente, fala sobre alguém que permanece obcecado pela música apesar de incapaz de interfacear com ela. Essa sensação é presente não só em Mick Kelly, ao fim de seu arco de desenvolvimento, mas também na própria autora, que inicialmente pretendia ser musicista mas após um período de doença, se fascina pela literatura e se afasta da música.
O livro gira em torno de John Singer, um surdo, e de outros quatro personagens que a ele se ligam: Jake Blount, um alcoólatra marxista revoltado e forasteiro na cidade; Benedict Copeland, um médico negro obcecado com salvar os negros de seu destino através da educação e disciplina; Mick Kelly, a adolescente rebelde filha da pobre família Kelly; Biff Brannon, o dono do New York Café e recém viúvo.
O livro alterna entre capítulos, sempre na terceira pessoa, mas que nos apresentam a perspectiva de cada um dos 5 personagens. Assim, logo de cara, nos é estabelecido que Singer tem apenas um grande amigo, o surdo grego Antonapoulos, e com ele se comunica fervorosamente sem ter do amigo grandes respostas. Antonapoulos começa a enlouquecer, acaba internado por seu parente e Singer, sozinho, se muda para um quarto alugado na pensão dos Kelly. Assim, ele é posto em contato com Mick, que desenvolve por ele uma paixonite e passa a ir se confidenciar com ele. Da mesma forma, quando Singer se torna sozinho no mundo, ele passa a frequentar o New York Café, onde trava conhecimento com Blount após resgatá-lo de um de seus acessos. Blount é obcecado em diferenciar o mundo entre aqueles que sabem e os que não sabem, isto é, os que entendem sua condição no mundo capitalista e sabem que são explorados e os que não. Convicto de que por trás da expressão serena de Singer e sua gentileza há um profundo entendimento, também ele passa a ir pra lá e despejar todos os seus problemas no surdo. Copeland passa a conhecer Singer por que queria conselhos para um jovem paciente seu que também é surdo. Brannon, por fim, passa a visitá-lo após a morte de sua mulher.
O interessante dessa relação onde todos projetam no mudo as suas necessidades, a maioria precisando quase confessar-se para alguém que não pode responder, e que compreende-os apenas parcialmente via leitura labial, é que isto é exatamente a relação egoísta que Singer tinha com seu amigo. Ele fuzilava o Antonapoulos unilateralmente, sem nunca ter muita certeza se o amigo o entendia ou sequer prestava atenção em algo que não fosse bebida ou comida, e se satisfazia com os seus ocasionais sorrisos. Talvez não à toa Singer adota o mesmo modus operandi de esboçar entendimento e sorrir para todos os seus interlocutores e é elevado ao mesmo patamar que colocava o amigo.
Naturalmente, do título à estrutura do romance, vemos o tema da solidão repetido, nas suas mais diversas nuances. Todos os personagens são, de uma forma ou outra, marginalizados, e, por isso, solitários em seus núcleos. Blount não tem amigos que não Singer, seja por ser novo na cidade, por ser marxista ou por ser extremamente raivoso. Mesmo compartilhando de mais semelhanças que diferenças em seu entendimento político, ele não consegue tornar-se amigo de Copeland quando eles acabam interagindo, e na realidade acaba brigando fisicamente com ele.
O doutor é evidentemente muito diferente da comunidade de negros pobres com a qual convive, tanto por sua situação econômica muito melhor quanto por seu nível educacional. Isso é notável até na forma de se expressar. Não sei como era no original, mas na tradução os personagens negros falam sempre com algum erro de concordância, exceto por ele. Ele é mais rebuscado, culto, erudito, e tinha como sonho que seus filhos promovessem o avanço dos negros, ocupando cargos importantes. Ele evidentemente falha, e torna-se amargurado, raivoso e distante dos filhos, que não o entendem e assumiram os lugares padrões que eram permitidos aos negros na época. Apesar de sua enorme filantropia e tentativa de fazer ‘seu povo entender' (que nem Blount), tudo que ele vê é miséria ou violência. No concurso de redações para crianças falarem sobre avançar a causa racial, a melhor redação é a de um rapaz que odeia os brancos e advoga por violência como solução após sua irmã ter sido estuprada por brancos. O caminho da revolução mediante à violência era repudiado por Copeland apesar de seus surtos de raiva, mas este parece ser o único caminho viável para a juventude, conforme testemunhamos na briga racial que se desencadeia no parque de diversões no qual trabalha Blount. Essa briga, inclusive, acaba terminando com a morte do jovem que ganhou o concurso, mas isso acaba não repercutindo tanto quanto achei que iria, fica só uma mensagem implícita.
Mick é uma adolescente com traços masculinos, revoltada e fascinada por música. É sob seu ponto de vista que se passam os momentos mais assombrosos do livro, como toda a cena com Baby Wilson. Seu irmão, Bubber/George, era meio apaixonado na tal Baby Wilson, que era sobrinha de Biff e vivia treinada para ser uma modelo ou atriz desde pequena. Um belo dia, as crianças estão brincando com a arma de um deles e Bubber, ignorado por Baby, acaba disparando contra ela. É chocante, de verdade. O menino foge para a casa na árvore e Mick decide que, para aprender uma lição, deveria dizer-lhe que ele seria preso, só pra que ele sofresse um pouco e depois ela ia buscá-lo. Ele na verdade acaba fugindo para a estrada fora da cidade e é pego depois. Bubber nunca mais será o mesmo, e nem sua família, agora perpetuamente endividada para pagar os custos de tratamento da Baby Wilson, que consegue se recuperar mas tem sua carreira paralisada por conta dos ferimentos na cabeça e a falta de cabelo. A partir daí, a família vai se desintegrando financeiramente e isso culmina com Mick se sentindo meio obrigada a começar a trabalhar logo antes dos 16 em um emprego de tempo integral enquanto ainda está na escola. Depois da perda da sua virgindade para Henry, um vizinho seu que foge da cidade depois desse dia, é isso que sacramenta a sua conversão forçada em mais uma adulta esmagada pelo sistema. Mick, perpetuamente exausta pelo trabalho, não consegue mais acessar seus dons e talentos musicais e nem seu mundo interior no qual ouvia e compunha melodias. Seu fascínio pela música, que a guiava a ir ouvir o rádio nas casas vizinhas até que Singer compra um rádio para seu quarto (sim, só pra ela, fofão), agora é um dom perdido para um salário de dez dólares semanais.
Biff é outro personagem indiscutivelmente queer. Impotente e num casamento onde o amor parece ter acabado, ele é um cara meio caladão, na dele, um pouco esquisito. Após a morte da sua esposa, vemos se revelar com sutileza (1940, afinal) um claro conflito seu em relação à sua sexualidade ou expressão de gênero. Ele passa a usar o anel de casamento de sua mãe e as loções da esposa, e nutre sentimentos maternais e conflitantes em relação à Mick e Baby Wilson. É um pouco perturbador como isso se desenrola porque tem momentos em que não sabemos se ele quer proteger Mick como mãe ou se ele se sente atraído por ela. Não sei se o objetivo era a ambiguidade ou o quê, mas que me deixou nervoso que fosse dar uma merda me deixou. Felizmente, fica só nisso. É interessante que ele é um dos poucos que entendia Singer como sendo uma pessoa normal, e observava que as pessoas colavam no mudo como um Deus. Talvez por isso é que, quando Singer se mata após descobrir a morte de Antonapoulos, é ele quem fica encarregado de fazer os arranjos funerários.
No fim, ficamos nisso: Singer se mata, a vida de todo mundo vai pro caralho e a cidade parece se sedimentar naquele núcleo de pobreza, miséria e racismo que já nos era familiar. A solidão não se resolve, Copeland, já doente e tendo apanhado por um triste incidente com a prisão de seu filho, termina indo morar com o sogro numa fazenda, isolado e cabisbaixo. Blount vai pra outro lugar depois da já citada briga no parque, na qual ele se envolve. Biff continua na cidade, meio perdidão em seu café que não vai bem, e de Mick já falamos.
É um excelente livro, e quero ler mais da autora inclusive. É daqueles livros que eu conheci pela TAG e sou muito grato e quase quero voltar a assinar, não fosse a falta de espaço na estante.
Livro divertidinho e, por incrível que pareça, inspirado em histórias reais, Nosso Homem em Havana é uma comédia sobre a credulidade dos agentes do serviço secreto durante a Guerra Fria. Graham Greene, o autor, foi membro do MI6, e aparentemente conheceu alguns agentes em outros serviços que inventaram subagentes, relatórios e tudo o mais, para extraírem uma graninha extra (até porque subagente e investigação tem despesa...).
Inspirado nisso, ele desenhou Wormwold, um britânico que vive em Havana há alguns anos com sua filha Milly. Wormwold foi abandonado pela esposa, e vive de forma pacata vendendo aspiradores de pó nos anos 50 para as mais variadas figuras do governo de Fulgencio Batista e outros endinheirados. Em um belo dia de encontro com seu único amigo, o alemão dr. Hasselbacher, ele acaba sendo recrutado pelo agente Hawthorne para fornecer relatórios sobre a situação cubana. Como sua filha, Milly, é bastante manipuladora, ela acaba arranjando uma égua e uma mensalidade para o Country Club, e assim inicia-se a motivação financeira para Wormwold justificar as suas despesas para o MI6. Seus colegas do clube, sem saberem, tornam-se seus agentes, e ele começa a fabricar relatórios falsos, indicando instalações militares e uma arma que, na realidade, é só uma invenção sua. Seu chefe até suspeita, mas percebe que se seu subagente for um mentiroso, a culpa é inteiramente dele também, e vai todo mundo na onda. A realidade, porém, é ainda mais estranha que a ficção, e agentes reais, por meio de Hasselbacher, começam a interceptar as comunicações, e inclusive atentar contra os agentes, inclusive contra Raul, que em teoria nunca existira. Isso acaba paradoxalmente salvando Wormwold, pois justifica para Londres que se ele estava visado, então tudo que estava revelando era real! No fim, ele tira sua grana, se casa com a secretária, ganha uma medalha e rola um puta abafa sobre a grande farsa esdrúxula em que todos caíram, movidos todos por suas carreiras e não o falso ideário de ‘nação' que se tentava impingir nos anos 50. Beatrice, a secretária, acaba não se zangado por ter dançado essa dança de maluco, mas sim se satisfazendo que seu patrão tinha princípios familiares mais fortes que o tal patriotismo. Me arrancou umas risadolas, divertido, e nunca tinha lido algo sobre Cuba ou espionagem.
Uma profunda reflexão sobre o papel das mulheres na sociedade nigeriana durante a colonização, e a relação entre as transformações sociais de uma espécie de êxodo rural na Nigéria, As alegrias da maternidade foi a segunda obra nigeriana que li esse ano, no que marcou meu interesse mais ativo pela literatura africana. O livro teve sua primeira tradução brasileira feita somente muito recentemente, com a recomendação de Chimamanda Ngozi, outra famosa escritora nigeriana, para a TAG Livros. Antes disso, a obra de Buchi Emecheta, ao que me consta, jamais havia chegado ao país, mesmo sendo ela uma das mais famosas escritoras nigerianas.
A vida de Buchi foi extremamente complicada; imigrante nos EUA com filhos pequenos, frutos de um casamento abusivo, ela embarca na escrita desse livro após sua filha ir morar com o pai. Isso é um contexto BEM importante para entender o próprio título do livro, que é na realidade irônico. Nnu Ego, a mãe central do livro, é fruto da relação de um poderoso chefe tribal dos Igbo, povo nigeriano, com Ona, sua amante. A cultura nigeriana permitia a poligamia masculina, de maneira que os homens poderiam ter várias esposas e também amantes. Ona, porém, era uma mulher muito mais altiva que as demais, e ativamente desprezava Agbadi, o que somente o atiçava mais. Acompanhamos então a concepção de Nnu Ego, que foi tão alta que acordou não só todas as esposas de Agbadi, mas todo o seu alojamento. A esposa mais velha, doente por sentir-se preterida por aquela moça que infringia tantas normas culturais ao não se submeter à presença masculina, morre. A tradição igbo previa que então sua escrava fosse enterrada com ela, mas, naturalmente, a jovem escrava se recusa, e tem que ser morta violentamente. Isso, por sua vez, cria uma espécie de maldição, e ela torna-se chi da criança que causou tudo aquilo, Nnu Ego. No que entendi, o chi é como fosse um espírito guardião do destino daquela pessoa. E isso, então, cria uma espécie de profecia negativa para a fertilidade de Nnu. Ona, que era filha de um viúvo, já tinha uma espécie de pacto sobre a maternidade, estabelecendo que não casaria, mas poderia ter filhos. Caso fossem meninos, seriam a continuidade de sua família e ficariam com seu pai. Se não, poderiam ficar com Agbadi, o que acaba sendo o caso.
Nnu Ego é moldada como uma boa mulher igbo: ela deverá casar-se com quem sua família decidir, e gerar filhos homens para perpetuar a linhagem de seu marido. Seu dote é alto, dado que ela é filha de um poderoso chefe tribal e ainda por cima uma linda mulher. Mesmo assim, seu casamento não gera filhos, o que a envergonha profundamente. Seu marido eventualmente segue a tradição e arranja mais uma esposa, e a renega ao papel de cuidadora dos filhos que venham, o que ocorre. Desesperada, ela passa a secretamente tentar amamentar e acalentar o bebê que nunca teve, e acaba expulsa quando isso é descoberto.
Ela então é mandada para Lagos para casar-se com Nnaife, o coadjuvante central da história. Chegando lá, ela encontra tudo que menos desejava: um marido feio, barrigudo e repulsivo, em um lugar desagradável. Lagos é completamente diferente de seu vilarejo em Ibuza; os nigerianos não tem lavouras, e vivem em minúsculas casas, recebendo salários e gastando quase tudo com mantimentos e contas. Muitos deles trabalham para os colonizadores britânicos, como é o caso de seu marido, que lava as roupas de seus patrões, inclusive as roupas íntimas da patroa. Essa submissão, na comparação com seu pai, torna Nnaife uma figura ridícula para ela desde o primeiro momento, o que por sua vez gera imenso conflito. Eles moram num minúsculo quarto no alojamento de empregados da mansão dos brancos, e vivem uma vida super apertada, o que a obriga a assumir, como tantas outras mulheres que a cercam, o papel de provedora secundária do lar. Assim, Nnu Ego passa a também ser comerciante, vendendo lenha, cigarros e outros bens, e nesse processo acaba tendo seu primeiro filho, que morre logo quando bebê. Isso gera a primeira cena do livro, na qual, perdendo seu propósito, aquilo que a tornava útil, ela tenta se matar se jogando da ponte.
Salva, Nnu Ego segue uma vida cujo único propósito é orgulhar sua família ao gerar descendentes. Ela vislumbra que apenas ao ter filhos, poderá ter quem cuide dela na velhice, idealizando a vida familiar num alojamento onde as famílias vivem próximas umas das outras. O futuro com a qual sonha é, em suma, um futuro que não cabe mais na Nigéria em que vive. Seus outros filhos acabam vingando, mas sua vida familiar torna-se cada vez mais difícil, especialmente quando eclode a Segunda Guerra Mundial, e os patrões os abandonam à própria sorte. Agora tendo que pagar também o aluguel de uma minúscula casinha sem o trabalho do marido, a mãe se desdobra, incumbe os filhos de ajudarem-na o quanto podem em sua vendinha, e briga com o marido para que ele consiga algum trabalho. Nada é como ela sonhou, e ela não tem quaisquer amigos. Sempre sem dinheiro, ela sequer pode arrumar-se para ir visitar outras pessoas ou na igreja, e sendo criada com a mentalidade tribal, não parece ser de sua índole montar uma comunidade que não seja de seu povo e sua família. Naturalmente, a vida não lhe reserva boas surpresas: o irmão de seu marido falece, o que significa que pela tradição, Nnaife deve herdar suas esposas e cuidar de sua família. Surge então mais um conflito, a disputa pela atenção e pelo parco dinheiro de Nnaife entre Nnu e Adaku. Adaku perde o único filho homem que consegue dar, e entra em constantes episódios depressivos e brigas com Ego. A vida familiar torna-se um inferno, e então o marido é basicamente sequestrado para lutar na guerra, sob promessa de rendimentos incríveis e uma futura promoção. O dinheiro custa a chegar, as crianças tem que sair da escola, e as mulheres brigam. Adaku revolta-se e resolve que pra ela já deu; suas meninas irão para a escola às custas de seu corpo, e na prostituição, apesar da desonra, ela encontra alguma espécie de prosperidade financeira.
O destino infeliz da família de Nnu Ego está selado: sua vida será dedicada a juntar cacos de dinheiro, numa escravidão velada onde os brancos abusam dos nigerianos em troca de miseráveis salários, em meio à inflação do pós-guerra. Suas filhas serão dadas em troca de um dote para alguma outra família para seguirem o mesmo destino, e ela terá de torcer para que os filhos consigam algum emprego decente apesar da desnutrição que os assolou por toda vida e o pouco estudo que puderam manter, sendo um pouco poupados do trabalho pesado, ao contrário das garotas. Os meninos vivem a angústia da escolha de estudarem fora, abandonando (temporariamente?) os pais, em busca de um futuro melhor para eles, ou de escolherem retribuir o sacrifício parental às custas de seus próṕrios futuros. Por mais que o primogênito queira ajudar a família, ele opta pelo primeiro, e seu pai o detesta, pois contava com ele para poder descansar. Uma das filhas de Ego decide que quer casar-se com um iorubá que ama, e com ele tenta fugir. Seu pai tenta matar o futuro sogro da filha e acaba preso. A vida em conjunto torna-se insuportável, e a mãe, enfim, retorna para Ibuza para passar seus dias em paz, tendo que abandonar a filha mais nova para ser criada por uma de suas gêmeas.
A vida de Nnu Ego é a vida de uma mulher isolada, firme crente de que apenas a maternidade lhe traria alegria, propósito e alívio de sua solidão. Nada disso se concretiza de verdade. Seus filhos são vítimas da pobreza extrema em que ela mesma vive, e, como eles mesmos percebem, acabam por causar. Mais bocas onde falta comida tornam-se um problema óbvio até mesmo para crianças. Sem nunca amar o marido ou por ele ser respeitada, ela mesmo assim mantém um semblante de vida doméstica com ele por falta de opção. Seus filhos, subnutridos e subeducados, tem que escolher entre salvarem-se ou perecerem com ela na pobreza eterna. A vida idílica do passado tribal é o futuro do pretérito para a mãe; não há nada que possa trazer de volta aquilo que foi perdido, e os colonizadores certamente não estão lá para facilitarem a vida dos nigerianos. A transição cultural deixa para trás uma família, e, com seus filhos no exterior, suas filhas casadas e seu marido a odiando, Nnu Ego volta para o ponto de partida que não mais existe em Ibuza, cansada e isolada. Uma mãe completa e alegre.
Tempo de Migrar para o Norte continua minha saga de explorar os velhos livros da TAG que eu da época de membro, e, de quebra, é também mais uma incursão na literatura africana.
O livro é também minha primeira experiência lendo algo que veio do árabe, língua essa que parece ser bastante lírica, ou ao menos eu assim penso desde que ouvi uma palestina declamar um poema.
TMN é considerada a obra prima de Tayeb Salih, um dos principais escritores da língua árabe do século passado, e foi inclusive premiado como o melhor livro em árabe. Trata de um narrador personagem que, na verdade, não é o protagonista da história. Esse papel cabe à Mustafa Said, um recém chegado à vila rural no Sudão onde morava o narrador. Conforme descobrimos, Said é também um dos poucos sudaneses que teve o privilégio de estudar na Europa, o Norte mencionado no título do livro. É justamente por essa experiência que Said reage com muito menos entusiasmo quando o narrador retorna da Europa após seu doutorado, e parece reclamar de brincadeira que ele deveria ter estudado algo mais útil para a aldeia, como agronomia, medicina, etc. É nessa primeira interação que o narrador começa a se interessar por essa nova presença, que chegou na aldeia e já tem essa pompa toda. Ele aos poucos percebe que além de ser uma presença muito importante na vila, contribuindo para o comitê de agricultura e afins, Said esconde algo e fala inglês perfeitamente, tal como ele, após ouvi-lo recitar uma poesia sobre a Primeira Guerra após ficar bêbado.
O livro é essencialmente o desenrolar da relação entre Said e o narrador, conforme o segundo ouve o primeiro narrar sua história, em sequências de flashbacks que recebemos após a morte/suposto suicídio de Mustafa. Said sempre foi brilhante em seus estudos, e foi conseguindo prêmios acadêmicos, sendo movido do Sudão até Cairo, e, enfim, para Londres, onde se torna economista de renome. Ele, porém, continua visto como um estrangeiro, ainda mais lá nos anos 40-50. Ele é uma figura folclórica, atraente por ser um selvagem se civilizando, conforme é dito durante seu julgamento, aludido durante toda a história. E ele então encarna esse estereótipo; sempre quase sem sentimentos, Said enche seu quarto de espelhos e perfumes orientais, apenas livros em árabe, fabrica identidades e histórias sobre seu passado como árabe africando e seduz mulheres em série. Sua sede pelo sexo feminino é, também uma sede de vingança, o Sul tomando o Norte como vingança pelos efeitos da colonização. Cabe aqui lembrar pra mim mesmo do futuro que, em essência, o Sudão foi colônia britânica até os anos 50, e o livro se passa portanto logo depois disso. Nesse momento, surge uma nova elite do funcionalismo público, da qual Said facilmente poderia ter sido parte. A elite pós-colonial adota discursos marxistas, conforme representado no livro pelo discurso durante uma reunião de diversos ministros de diversos países norte-africanos. O discurso em si é: “É preciso que não haja contradição entre o que o aluno aprende na escola e a realidade do povo. Quem aprende hoje quer se sentar a uma mesa confortável, embaixo de um ventilador, quer morar numa casa rodeada por um jardim e com ar-condicionado, quer andar num carro americano da largura da rua. Se não cortarmos esse mal pela raiz, estaremos contribuindo para a formação de uma classe burguesa que não tem nenhuma relação com a realidade de nossa vida e ela será mais danosa para o futuro da África do que o colonialismo em si”. Essa elite é composta muitas vezes por funcionários públicos como o próprio narrador, que após estudarem fora, tornam-se a classe dominante e se adaptam à corrupção. Não que ele o seja, mas há a clara sensação de descasamento entre sua realidade na vila e o pretenso trabalho que ele realiza na capital.
Said revela, aos poucos, ter se envolvido com várias mulheres que se suicidaram, muitas culpando-o, e ter enfim sido preso pelo assassinato de sua esposa, a única que invertia a relação e o fazia de presa, em uma cena sexual bizarra onde ele a esfaqueia durante o ato sexual e ela meio que pede por isso. Em teoria é por essas cenas de violência e sexo explícito que o livro foi proibido quase imediatamente no Sudão, mas é provavelmente por conta das críticas políticas feitas ao governo pós-colonial.
Com a morte de Said, sua viúva torna-se mais uma vez vítima das tradições locais e é oferecida por seu pai para casar-se com um velho mulherengo super arrombado da vila, e ela se recusa. Como o narrador é encarregado pelo falecido de cuidar de seus filhos e sua mulher, impedindo que eles inclusive façam a escolha pelo caminho viajante que ele fez, as atenções se viram para que o narrador case-se com a pobre e salve ela, o que ele, que já tinha mulher (lá pode), acaba recusando. Ela chega a implorar para a família dele, mas ele, conflitado pela culpa de gostar dela de fato, não aceita. Ao fim, ela é casada à força com Wadis Irrayis e se recusa a dormir com ele. Quando ele não aguenta mais e tenta violá-la, ela o assassina, esfaqueando seu pênis e resistindo bravamente; ele a mata no confronto, no que parece ser o primeiro homicídio da vila. O narrador, enlouquecido com a tragédia, agride seu melhor amigo, depois vai ao quarto trancado da casa de Mustafa, uma espécie de santuário à própria memória que ele criou. Enxergando a tentativa egocêntrica de Mustafa de criar uma narrativa para ser lembrado, o narrador percebe a farsa do homem ao notar que, em sua biblioteca particular, não havia sequer um livro em árabe, apenas em inglês. Desistindo de tocar fogo em tudo, ele vai nadar no rio até quase afogar-se, mas, ao fim, escolhe a vida.
Said e o narrador são lados opostos da reação ao sistema da colonização e seus legados, que naturalmente persistem mesmo depois que a ocupação física termina. Enquanto o narrador é passivo, sem grandes ambições, e vai seguindo a trilha usual, Said é vingativo, e busca no Norte saciar o Sul, usando as técnicas deles para obter proveito. Ambos, em sua própria maneira, parecem falhar, mas com uma espécie de redenção final ao approach mais calmo do narrador. Naturalmente, não há solução pronta, e a tragédia sudanesa persiste.
O país viveu já duas guerras civis, a mais recente tendo desembocado na criação do Sudão do Sul, e milhões de mortes, além do genocídio de Darfur. O Sudão hoje em 2023 vive sob uma junta militar, e continua sendo um dos países mais pobres do mundo. Milhares de sudaneses tentam, todos os anos, migrar para o Norte.
Garota Ícaro é um livro que comprei há quase 10 anos num sebo da universidade porque era um livro de terror baseado na mitologia nigeriana, e assim ficou na temida Estante por anos a fio até um dia que eu decidi que ao ir viajar com a firma para o Club Med, valia ter um livrinho pra ler e terror é um bom gênero pra tal.
A escritora é nigeriana de origem, agora mora em Londres, e escreveu esse livro aos 18 anos nos fins de semana, o que é de fato bastante impressionante. Naturalmente, como seu primeiro livro, ainda tem muito o que lapidar aqui, mas o livro é legalzinho, e me deu vontade de revisitar a autora eventualmente.
O enredo se centra em torno de Jessamy, uma criança inglesa filha de mãe nigeriana e pai inglês, e naturalmente gira em torno das questões de identidade da garota, que passa a ser assombrada após uma viagem à Nigéria para conhecer a família materna. Jessamy tem frequentes ataques na escola, com muita dificuldade de fazer amigas e sofrendo bullying por suas origens raciais mistas. Com a viagem, porém, os problemas pioram, pois Jess passa a ter uma entidade chamada TillyTilly como amiga. Inicialmente dada como imaginária por seus pais, TillyTilly passa a gerar comportamentos cada vez mais problemáticos em Jess, o que por sua vez fissura o casamento de seus pais. O pai, inglês, quer pegar leve com a garota e buscar soluções médicas, enquanto a mãe crê que é a magia nigeriana ou um tapa que podem dar solução. Eventualmente, Jess descobre que tinha uma irmã gêmea, Fern, através das visões que TillyTilly lhe fornece; aparentemente, TillyTilly está na mesma situação, sendo a gêmea remanescente. O folclore nigeriano dos iorubás define que, quando um dos gêmeos morre, uma estátua ibeji deve ser feita em sua homenagem, e os pais devem tratá-la como o filho perdido, sob a pena de terem punições divinas caso não o façam. Naturalmente, os pais de Jess estão agora às voltas com essa assombração, que passa a possuir sua filha cada vez mais, tendo até que trancá-la no porão. A mãe eventualmente começa a entender que há algo de errado, eles voltam para a Nigéria e no fim Jessamy parece finalmente tomar conta da situação.
O livro acaba se tornando meio repetitivo, e o fim é meio sem sal, mas eu de fato em alguns momentos fiquei meio assustadinho, o que é foda, nunca tinha lido terror, e me deu vontade de ler mais do gêner, da autora e de literatura de origem africana no geral.
Recebi esse livro há no mínimo dez anos, e fiquei anos com ele semi esquecido ali na estante. É possível que esse tenha sido um erro. Esse é claramente um romance de formação que serve muito bem para essa fase da vida ali no começo da faculdade, e talvez tivesse sido bem mais útil lá do que agora? Não chego a dizer que esse é o livro que mudaria a vida de alguém, mas sim que ele toca nos pontos e nas feridas que, na época, eram muito mais problemáticos pra mim.
O Fazedor de Velhos é um livro curtinho, daqueles que dava pra ler num fôlego só, 1-2 dias no máximo. Arrastei por uma semana, com quase uma data de validade, por estar doente mas ao mesmo tempo querer iniciar uma nova leitura em francês quando fosse viajar com a firma. Sabe-se lá por que gosto que meus hobbies façam parte ativa da minha divisão do tempo.
Estivesse eu em melhor saúde (ficar doente beirando uma viagem é foda, ainda mais quase seguido), acho que esse livro teria me embalado na onda semi transcendental que entrei depois de uma produtiva sessão de terapia. Pedro é um jovem que sai em busca de si, com o auxílio do misterioso e rabugento Nabuco, o titular ‘Fazedor de Velhos'. Perdido em sua faculdade, recebe a instrução de consultar essa figura com a qual já se havia deparado duas outras vezes, quase que por acaso. Nabuco o ilude com missões acadêmicas que na verdade eram testes complexos, e faz com que Pedro por fim se encontre, em seu carinho pelo velho e em sua recém formada paixão pela afilhada de Nabuco, Mayumi.
É um livro sobre a passagem do tempo, como o sentir é necessariamente o sentir da passagem do tempo, e a inspiração que Pedro acaba tomando por tornar-se escritor, viver sua vida, ler para sentir, me tocaram e quiça me tocariam mais na sensação de joie de vivre, de querer viver e voltar ao eu aventureiro que um dia fui nos idos tempos de 2019 não fosse essa maldita gripe. Não obstante, porém, talvez tenha sido parte de um longo wake up call que eu estava precisando, por mais que eu não esteja perdido no mesmo sentido que o protagonista. Bom livro, boa escrita e tocante.
Não há nada que eu possa dizer sobre Macunaíma que não tenha sido melhor dito umas quarenta vezes por pessoas muito mais articuladas e estudadas que eu. Tem livros que você lê, olha, fala, ‘é, isso é do grande caralho' de forma abstrata. Dá pra absorver uma obra de arte sem que, por qualquer triste motivo, cê tenha sido extremamente tocado, como já fui e quis wax poetical por palavras a fio sobre x livro. É extremamente provável que timing seja uma questão central e o timing de vida de ficar doente logo após ler o livro, de estar meio questionando minhas escolhas, etc, não me ajude a ter cabeça pra me embeber na obra, que se não é gigante, é densa. De qualquer forma, esse exercício especulativo não vai me fazer nada além de fomentar a culpa que reside em mim, e disso estou farto.
Macunaíma é um livro intraduzível, absolutamente inviável em qualquer outra língua que não seja o português brasileiro. É óbvio que o próprio objetivo dos modernistas, que Mário de Andrade representa tão bem, é essencialmente fechado para nós mesmos. Criar uma literatura que seja verdadeiramente nossa, e não inspirada nos modelos europeus (como fez o Romantismo anteriormente), e que incorpore características da nossa oralidade, implica criar livros que são inacessíveis à tradução. O jogo sonoro, a absorção de expressões e vocabulários das matrizes africanas e indígenas, então, selam o destino do livro como obra possível apenas e tão somente para nós. Se por um lado isso é uma oportunidade única, por outro implicam na existência de uma série de mundos que são inalcançáveis para nós, enquanto não cidadãos de inúmeros países. É um trabalho árduo que nem ser hiperpoliglota garante. O tempo escorre por minhas mãos.
Filho do silêncio, Macunaíma nasce sem pai, feio. Precoce, não fala por preguiça, mas já se interessa por mulheres aos seis anos. Mário é muito enfático ao dizer que não pretendia que seu livro fosse lido como uma ‘alegoria' ou coisa do tipo, o que parece demais algo que fariam hoje em dia, uma parábola da colonização ou coisa do tipo. O escritor é profundamente interessado no Brasil e cria um herói negro filho de índigenas que em certo ponto torna-se branco. A obra é tecida por capítulos curtos que acabam sendo quase fábulas isoladas em si, mas sem o objetivo explícito de ser uma explicação para as expressões brasileiras ou uma origem lendária de nossas frutas. Acontece de vez em quando de forma explícita, ‘por isso que se fala x', mas não parece ser o objetivo formal do livro. Em busca de seu talismã perdido (muiraquitã), dado pela mãe do Mato, Ci, Macunaíma empreende uma viagem até São Paulo para reavê-la de Venceslau Pietro Pietra, colecionador. Ele também é o gigante Piaimã, e o livro se desenrola sob essa trama de reaver a tal muiraquitã, que é na verdade a joia mais valiosa da coleção do gigante. É um episódio que fala tanto sobre o destino da arte, que perde o valor funcional para tornar-se algo inútil numa coleção/museu, quanto do efeito da colonização, rapinando os bens indígenas para vendê-los e exibi-los. Eventualmente, Macunaíma triunfa, mas já não é mais o mesmo, e não se sente em casa nem na cidade, nem nas terras virgens em que vivia. Cansado e ludibriado por Vei, a Sol, ele decide virar uma estrela e brilhar inutilmente. O herói sem caráter, tanto pela sua falta de moralidade (ele é totalmente piroca) quanto pela falta de característica que o defina, Macunaíma é incapaz de se ater à um projeto, uma definição, e nisso representa o brasileiro. Mário é explícito em dizer tanto que o brasileiro não tem ainda caráter definido, isto é, é um povo ainda sem uma estrutura definida, fruto de um processo sociológico único que amalgamou muitas culturas em uma e criou um povo novo (versus a transplantação do povo inglês pros EUA no começo de sua colonização), mas alude que essa malandragem, essa imoralidade de Macunaíma, também nos representa bem. E representa mesmo. Tenho que ver o filme com o Grande Otelo.
Memórias de Um Sargento de Milícias é talvez das primeiras incursões do malandro e da malandragem (cariocas, naturalmente) na literatura brasileira. Em uma época onde o romantismo e a visão idealizada da nação, tal qual em O Guarani, efervescia, surge uma crônica de costumes satírica.
Diz o prefácio do meu livro, e aí me falta gabarito pra descrer da tese original do cabra, que o livro tem um pano de fundo político muito claro. Publicado em capítulos na Pacotilha, versão bem humorada do Correio Mercantil, o livro seria na realidade uma crítica liberal aos conservadores, expondo a época de Dom João como uma época de figuras toscas e corruptas, como bem exemplificada pelo simpático Leonardo Pataca.
Pataca é um meirinho (oficial de justiça), classe essa que gozava de bastante poder na época. Ele é o pai do protagonista, também Leonardo, e vive se enrolando por amor, sendo inclusive preso na casa duma cigana (rituais eram proibidos na época). Desde tempos imemoriais, as forças policiais do país fiscalizam a fé alheia, cês vejam. Ele acaba expulsando o filho de casa em meio aos seus problemas conjugais (sua mulher trai ele) e Leonardo vai morar com o padrinho, um barbeiro, homem de bem que põe muita fé nele e por acaso desviou uma soma gigantesca de grana pra si. Todo mundo é meio malandro bandido, meio espertinho, e apesar das falas de época, tem um quê de Rio de Janeiro ali já. E o livro é de fato engraçado, coisa que sempre surpreende dada a idade.
Como o livro era publicado semanalmente, os capítulos geralmente acabavam sendo histórias pequenas e isoladas, pra fisgar o leitor mas não afastar completamente quem não acompanhava frequentemente. E nessas historietas se desenvolve uma gama de personagens, a velha rica viciada em processos judiciais, o major Vidigal, temor dos malandros e que literalmente recruta bandidos como punição, e alguns membros próximos à corte. Isso tudo se encaixa, diz a tese supracitada, em um pano de fundo no qual as origens dos vícios da sociedade brasileira vem desde a época de Dom João, e que portanto expõe as teses conservadoras como furadas. É maneirinho, mas não sei se tenho muito mais pra dizer.
Fui consultar meu review de Iracema pra poder me embasar melhor no que eu senti lendo Alencar antes. O Guarani é anterior, mas guarda parte do projeto literário de criar uma literatura genuinamente brasileira (com os matizes românticos da época). Tal qual Iracema, parece que há uma tentativa de não só estabelecer a literatura, mas construir um mito fundador: o brasileiro como junção do indígena ingênuo e nobre com o valente português cristão. Os gêneros aqui são trocados, mas posto que Iracema vem depois, me arrisco a dizer que era mais fácil para a visão de mundo de Alencar encaixar o heroísmo português em Martim do que a ingenuidade de Cecília, a coprotagonista de O Guarani.
O que não senti nesse livro como pareço ter sentido em Iracema, é a distinção entre o brasileiro verdadeiro e o indígena. Aliás, pelo contrário, o livro todo é calcado na natureza local como sendo o ponto de pureza da terra, que por exemplo revigorou o fidalgo D. Antônio. Peri, o protagonista indígena, é chamado de nobre, de rei, muito antes da sua conversão ao cristianismo. Ele é o exemplo de um abnegado extremamente virtuoso, inclusive mais até que alguns dos portugueses. O vilão, aliás, é um frade que larga a batina impromptu, nem chega a ser um falso frade ou coisa do tipo, o que parece que seria polêmico na época mas ninguém menciona. Talvez ele metaforicamente largar a batina não tornou isso uma crítica velada à Igreja, mas isso que pareceu legal, o índio tem mais virtude que o frade! Talvez por ter sido anterior à sua época política/conservadora, aqui Alencar está menos marcado por alguns vícios?
É óbvio que a colonização feita por D. Antônio é extremamente romantizada, e claramente Peri é uma exceção: os aimorés são representados como bárbaros canibais. Ainda assim, o papel mais relevante dado à natureza brasileira como originária do arquétipo do brasileiro original, ao invés da noção de Iracema onde o brasileiro só surge da mistura de povos e portanto a natureza originária não é protagonista nacional, é mais legal. E de verdade, todo mundo fala que esse livro é um porre, achei que ia ser um peso, e né não, só não devia ser empurrado goela abaixo de uma criança de 12 anos que não lê usualmente.
Fui lendo esse livro aos poucos, como costumo fazer com os não ficção que ocasionalmente leio, e acabou que o próprio livro passou a carecer de mais capítulos de desfecho. Gonçalves Dias, mencionado no livro, virou ministro do GSI, caiu pela participação no 8 de Janeiro. As forças armadas por meses permitiram acampamentos golpistas, protegendo seus familiares que organizavam tais manifestações. A mulher do golpista Villas Boas, citado no livro, é um fortíssimo exemplo. Em certo nível, fica quase como um epílogo do epílogo de uma infâmia constantemente alongada: a presença dos militares na política brasileira. Herdeiros de um legado mitológico e incessantemente endeusado, os militares até antes de 64 eram presença constante na vida civil do país. Vemos isso na Proclamação da República, na pataquada narrada nos Sertões, no número de generais candidatos, e por aí vai. O desprezo pelo poder civil é antes de tudo um infeliz marco histórico das forças, que acabaram por matar mais brasileiros do que inimigos externos.
Desde a redemocratização, qualquer crise suscita uma chuva de notinhas em off de que os generais estão pensando em intervir. Foi esse climinha no impeachment do Collor, na obrigação que Sarney assumisse, na época da Dilma, e óbvio, nos quatro anos de Bolsonaro. Antes, o mais explícito que se havia visto eram notas bizarras um pouco antes do impeachment da Dilma, e as manifestações grotescas contra a CNV. Teria aí começado um movimento inclusive de fritura da Dilma, e de maior participação explícita no Executivo. As forças de segurança e as forças armadas passam a lançar mais candidatos, a candidatura de Bolsonaro começa a ser gestada numa formatura da AMAN em 2014... Inclusive, quem era responsável pela Aman na época é o tal ‘general democrata' que hoje em 05/23 comanda o Exército, Tomás Paiva.
Quando Temer assume, o GSI é recriado e Etchegoyen, cuja família inclusive foi alvo da CNV provocando sua reação, assume o ministério. Temos a intervenção federal na segurança do Rio, com Braga Netto como interventor, e um pouco antes temos o Heleno e as forças ganhando musculatura no Haiti. Mesmo signatário de acordos internacionais que nos obrigavam ao reconhecimento dos crimes da ditadura, mesmo com governos de esquerda com altíssima aprovação, relativamente pouco se fez. Lula, agora tricampeão mundial de conciliação, tinha outras prioridades, e os quadros do PT na época tinham alguns parentes de militares, como Mercadante. As escolas de formação seguiram falando em revolução de 64, os centros de tortura ficaram por aí e pouco trabalho de memória foi feito. Nunca teríamos nosso Argentina 1985, pelo visto. E claro, a reação militar à CNV tornou claro que talvez houvesse pouco espaço pra isso. É a eterna tese de que depois vemos porque hoje não dá e isso nos trará desavenças políticas, que é só usada quando interessa. Temos prioridades, como reduzir a miséria, reconstruir o país, então porque o governo encamparia uma reforma militar? Bem, porque de picuinhas estamos cheios. O governo se meteu em furadas espalhafatosas, cá e lá, sem pensar se eram viáveis ou não. Mexer no saneamento, por exemplo.
A escalada golpista das forças levou ao que hoje descobrimos e provavelmente seguiremos descobrindo: almirantes foram usados para contrabando de joias, tenentes falsificaram cartões de vacinação, majores planejavam golpe e eram dados como mortos mesmo claramente vivos, e a lista nos levaria o dia todo. Um general da ativa, Pazuello, comandou o Ministério da Saúde, sabotando o combate à COVID-19 e levando à centenas de milhares de mortes. Disse que sua missão foi cumprida, mesmo com Manaus sufocando sem oxigênio por pura incompetência e descaso. Tivemos os já citados acampamentos, planos de golpe que foram frustrados por pouco, o 8J, e vai saber mais o que. Mesmo assim, as forças políticas não abordam a questão militar nem para resolver parte do problema fiscal. A mídia segue dando palco para generais em off, coisa grotesca. Mídia essa que representou muito mal um ponto CORRETÍSSIMO do programa do PT em 2016 quando do impeachment: a reforma curricular das escolas militares. É inviável construir estabilidade democrática se generais da ativa podem cuidar até da articulação política, porra. E o mais triste é que mesmo com uma vitória acirradíssima de Lula, com extensa manipulação eleitoral da turminha bolsonarista na PRF e afins, o ministro da Defesa seja e siga sendo José Múcio. Múcio, que defendeu os acampamentos como democráticos, conseguiu a incrível proeza de que no aniversário do golpe de 64 os militares falassem NADA (e nem o governo, fora o Silvio de Almeida parafraseando o procurador Strassera). O atual senador e ex-vice Hamilton Mourão, vaticinou que se o governo errasse demais, a culpa iria pras FFAA. É o que se vê, com os militares sendo alvo de escárnio e desprezo público em toda santa rede, crescente à cada nova revelação e investigação. Mesmo assim, optamos pela estratégia de conciliação com eles, como se não houvesse relação causal. Não preservamos a memória, anistiamos crimes contra a humanidade, permitimos a infiltração política nos quartéis, deixamos até que o 142 fosse escrito daquele jeito. Político algum encampa isso bem, e nem a sociedade civil se manifesta com veemência. E nesse ciclo de esperar até que o último cadáver de um torturador seja roído por um verme para que possamos acusá-los, se incensam movimentos golpistas no país. Não é que se brigarmos com os militares, eles vão dar um golpe. Podem querer, mas não conseguirão manter e isso ficou claríssimo. Talvez se a eleição americana em 2020 terminasse de outra maneira, o ambiente internacional seria distinto, mas eles apenas podem ladrar. O que tememos? Tudo que podia acontecer de negativo já está ocorrendo. Eu inclusive vou um passo além: quando lemos o livro do Fábio Victor, só fica cristalino quão necessário é que se fale mais do assunto e que alguma iniciativa política seja tomada. Muitas discussões necessitam de catalisadores, líderes que tragam o assunto pra pauta. A causalidade aqui é outra: nada fazemos, a memória se esvai, os militares se politizam e cria-se uma extrema direita pró-64. É inadmissível que não aproveitemos agora para estabelecer limites saudáveis.
Essa é a nossa oportunidade, e talvez seja a última.
Não é a primeira vez que tento ler Os Sertões, mas é a primeira vez que eu de fato consigo tankar esse começo que é dezenas de páginas sobre geologia e nada mais. Continua bastante difícil de tankar, e eu fiquei na dúvida se era válido ou não pular. Provavelmente é, mas eu queria me testar e foi um bom sonífero. Eu não imaginava que ia passar a gostar e ver mérito em tudo, e menos ainda que esse livro inspirou livros do Sandor Marai, Llosa, entre outros. Quero ler o do llosa ao menos, é dos 1001.
É até difícil classificar esse livro como qualquer coisa, porque ele não chega a ser uma biografia nem uma tese. É essencialmente o livro de um jornalista tentando explicar como se chegou ao ponto que se chegou em Canudos. Ao longo do livro, que é dividido em três partes, Euclides expõe a história que não pode escrever quando era correspondente e adido do Estado Maior na última expedição à Canudos. Euclides é claramente muito inteligente, estudado e um PORRE. Ele usa um vocabulário que eu nunca vi na minha vida em qualquer livro do português antigo, e foi inclusive criticado na pelo Verissimo por isso. É o estilo do cabra? É, mas é pedante. E piadas à parte, talvez seja a maneira dele dar um verniz de credibilidade pra um livro que era uma espécie de confissão de que a verdade foi omitida por ele.
Vamos aos fatos: a República é decretada por meio de um golpe militar, e começam a surgir alguns focos pra lá e pra cá de resistência, como no Sul. A figura messiânica de Antonio Conselheiro vai surgindo nos sertões do NE como um andarilho extremamente cristão, que anda arrebanhando fiéis e realizando obras em igrejas. Ele inspira medo no poder oficial por sempre se declarar contra a República, o que encaixa um pouco na narrativa de que ‘o povo assistiu àquilo [proclamação] bestializado'. Como católico fervoroso, ele e seus seguidores não se afeiçoaram ao ideal secularista que a República trazia, como casamento civil e afins, e pareciam preferir a monarquia, mas não do jeito revolucionário que outros grupos traziam. Não é exatamente um culto louco porém inocente, por que muitos bandidos se juntavam ao grupo e saqueavam vilas perto. Vai crescendo esse incômodo, a Igreja tenta dar uma segurada nele porque eles tavam já oficiando casamento e afins, invadindo lugares pra pregar, então um conflito vai se avizinhando. Com a proclamação da República, a tensão se acirra com uns impostos novos em tabuletas que ele retira. Conselheiro chega a ser preso ao longos desses vários anos, mas pós Proclamação, ele diz que não vai mais se entregar desse jeito porque não reconhece o novo governo. Aí pronto. Ao fim, a tensão explode quando um acordo comercial legítimo onde madeira lhe seria entregue simplesmente é segurada por um juiz local que tinha tido que fugir quando o bando do Conselheiro invadiu. Aí pronto, começam os rumores de que a turma vem aí meu deus do céu, e o governo baiano é forçado a intervir. Começam assim as expedições pra derrotar Canudos, e eventualmente elas se transmutam de lidar com uma ameaça à segurança local para uma guerra heróica onde o país enfrentaria o reacionarismo dos sertanejos, numa espécie de inimigo comum que unificava a República e que caso não fosse debelado levaria à novos focos de revolta. É muito importante isso aqui: isso foi propaganda PURA do governo e exército com ajuda da imprensa e opinião pública. A farsa começa aí.
Euclides era um militar que queria ser escritor e era politicamente ativo, chegando à ter alguns entreveros disciplinares. Seu sogro era militar e também participava de reuniões, movimentos, etc. O combo de ler isso com Poder camuflado foi absolutamente não intencional mas meu deus do céu, a nossa república é tutelada pela farda desde sempre, é impressionante. Nessa ideia positivista, são os militares que se outorgam a ideia de trazer a república, a civilização, o secularismo e o raio que o parta. Eles seguem embebidos disso em pleno 2023 mesmo se aliando com um anti-democrata, e aí entra a tese de que esse discurso é a mentira conveniente. As motivações são sempre muito mais torpes, e esmagam os próprios militares de baixa patente. Euclides é eventualmente chamado como jornalista para última expedição, que o país acompanhava já com muito ardor. Note-se que foram QUATRO, então nessa altura a coisa já se elevou e vão tipo 6k homens porque tudo mais falhou repetidamente. Euclides como correspondente não vai ao fundo do que ele chama posteriormente de crime, e aí ele ao voltar escreve Os Sertões como uma denúncia. O país ama seu livro e meio que percebe o merdelê que foi feito. Puxando sardinha pra minha questão com os militares, fica evidente o fracasso COMPLETO das campanhas. Soldados afoitos por glória ignoram instruções, comandantes ineptos e arrogantes bolam estratégias pífias (que o Euclides critica e sugere melhor, nerdola). É inadmissível que um exército que de fato tinha experiência de combate, munições, tudo, perca tantas vidas para ao fim massacrar todo mundo, que é o que é feito. Humilhados, inclusive, os soldados tornam-se extremamente cruéis. Massacram prisioneiros, botam fogo no arraial todo, e, de novo, morrem como moscas por ignorarem o cerco e esperarem a desistência. Isso com apoio do tosco oficialato. E é impressionante que o exercicio de memória que o Brasil moderno faz sobre isso é quase zero e depois de 25 MIL MORTOS E UM MASSACRE o Exército siga outorgando-se tutor e moderador da República. Como diz Sobral Pinto, ‘os militares nunca aceitaram não ser os donos da República'.
E como diz Euclides no seu livro: ‘Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”
Esqueça tudo que o pai tá lendo os 1001 livros no original também e (quase) tirando de letra. De verdade, além de ser motivo de orgulho do meu espanhol aprendido na base da falação e embromação, ler esse livro em espanhol me desperta algumas pequenas reflexões sobre a tradução. Tradução é sempre imperfeita e funciona como uma moldura, e existem obras que consensualmente não tem o mesmo sentido fora de seu original (Finnegan's Wake), mas quão abrangente é isso? Algo da magia é perdido, mas quanto justifica eu jamais ler qualquer outra tradução desde que eu fale a língua original ou ela seja atingível? Acho que vou ter que simplesmente ser bastante arbitrário com isso e beleza.
Gostei tanto desse livro que quis espremer ele inteiro, li cada ensaio do livro até realmente chegar à ausência de algo mais pra ler (até que eu ceda aos impulsos de sair comprando mais livros do Garcia ou coisa do tipo). Cem Anos de Solidão foi meu primeiro contato com Garcia Marquez, literatura colombiana e realismo mágico, e as múltiplas referências literárias contidas nos ensaios formaram um tentador mapa da mina a ser eventualmente seguido, no longínquo dia que eu avançar mais em ter uma estante onde eu li a maioria dos livros. Ler, felizmente, é uma compulsão minha que nada ainda conseguiu tirar, por pior que a era digital tenha tornado meu foco.
Cem anos de solidão é tida por muitos como o suprassumo do realismo mágico latinoamericano, mas não é seu ponto de origem, segundo dizem os grandes sabichões da literatura. Aparentemente, e isso de fato se sente, o que CAS faz é criar um projeto literário acessível, com base em toda essa estrutura latino americana pré existente. De fato, dá pra dizer que as tiragens comprovam que ao contrário do que se diz de certas obras da época, o livro é de fato pronto para ser lido no nível de profundidade que desejar seu leitor. Não requer conhecimentos literários profundos e contato com a teoria da época para com ele se deleitar. Arrisco dizer que é meio que o meu caso, e sempre me assusta pensar que na verdade metade do que eu ler vai ser insuportavelmente arcano porque me falta estudo. Coisa da vida. Não era muito claro para mim o que significa o tal realismo mágico, posto que parece existir uma contradição inerente em juntar magia e realismo. Confesso até que eu achei que realismo mágico era tratar a realidade observada como mágica, um certo deslumbre ou coisa do tipo, e talvez até exista um movimento esquisito nessa onda, mas né nada disso não. Ao menos em CAS, o que ocorre é que temos um universo que é essencialmente realista, extremamente similar ao nosso, com as mesmas referências históricas (sir Francis Drake, guerra civil, etc) mas polvilhado de acontecimentos fantásticos sem que o mundo seja fantasioso e nem que sejam eles o alicerce da novela. Não é trivial delimitar isso, mas na minha cabeça, um livro que se passe na nossa realidade e de repente seja povoado por dragões, e então o tema central do livro seja sei lá, uma guerra com dragões, não seria realismo mágico nem ferrando. Em CAS, os elementos fantásticos são tratados com essa extrema naturalidade, e por vezes despertam até menos fascínio que desenvolvimentos tecnológicos usuais (tipo gelo). Os tapetes voadores trazidos pelos ciganos que chegam em Macondo, a cidade ficcional na qual se centra o livro, são simplesmente parte da ordem do dia. Aqui, GCM diz ter pego emprestado de sua avó essa verve de contar as histórias mais fantásticas sem qualquer menção ao quão maravilhosas elas pareciam, e nisso ele absorve toda a atmosfera folclórica da América Latina para então buscar retratá-la de uma maneira tão verossímil quanto à realidade, não obstante Macondo tenha uma chuva que dura 4 anos, um homem perseguido por borboletas amarelas, mortos que insistem em permanecer vivos, e por aí vai.
Nunca sei se faz sentido resumir para mim mesmo o plot daquilo que acabei de ler como forma de lembrar. Com livros famosíssimos, certamente tudo que eu tenha pra dizer e especialmente resumir já foi escrito inúmeras vezes e com muito mais talento. Ainda assim, um outline: CAS trata da história da família Buendía, começando pelos precursores José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, primos de primeiro grau. A história da família se entrelaça com a história de Macondo, a remota vila que eles e mais outro punhado de pessoas fundam próximo ao pântano no interior da Colômbia. Começa aí a tal solidão do título do livro. José Arcadio se encanta com as invenções dos ciganos, e em sua solidão, ignora sua família e filhos. Começa aí a sina dos José Arcadio, a repetição de padrões familiares até a eventual extinção dos Buendía. José quer fotografar Deus com o daguerreótipo, se encanta com o gelo, quer ser alquimista, e meio que caga pra criançada porque criança é insuficiente mental. Encantado com o conhecimento dos ciganos, torna-se grande amigo de Melquíades e o traz para morar em sua casa. Obecado com conectar Macondo com o mundo, parte em expedições e acha um galeão espanhol cravejado de plantas no meio da floresta. Seu fim é melancólico, delirando em latim e preso à uma árvore, e mesmo após a morte continua, como muitos, vagando. Ao longo das décadas, Úrsula permanece, impávida, a mulher latino americana típica, que tenta dar ordem ao lar e à família. Generosa, adota os 17 filhos bastardos de Aureliano, seu filho. Expande sua casa, recepciona os forasteiros, e mantém-se alijada das decisões do patriarcado familiar. Vive 120 longos e árduos anos, assistindo filhos sumirem pelo mundo, o signo do incesto permanecer (e por sorte não vê o tão temido rabo de porco que casais incestuosos produziriam, ela só surge no último Buendía). Há um macrocosmo a ser explorado sobre os papéis de gênero que CAS elucida, e não serei eu a construir com 2 mãos o castelo que já existe. Ao longo das décadas, vemos o apogeu e a queda simultânea de Macondo e dos Buendía, o que não poderia ser diferente, posto que estão umbilicalmente ligados.
Macondo se industrializa, cresce, cria fábricas de gelo, modifica seus rios, e se envolve em dois acontecimentos históricos que aí definitivamente estabelecem o objetivo de sintetizar a história latinoamericana moderna em um só livro: a guerra civil liberais x conservadores e a companhia bananeira e seu massacre. As 32 guerras que o Coronel Aureliano Buendía perde acabam sendo vãs tentativas de poder, e explicitam a perversa dinâmica latinoamericana onde os caudilhos que buscavam tomar o poder eram tão cruéis quanto os seus supostos algozes. Arrisco dar uma de sabichão e dizer que a dinâmica de guerras civis em qualquer país que siga as tendo não deve ser muito distinta não. Esse panorama de guerras infindas é literalmente parte da história da Colômbia mesmo, aliás. Quanto à empresa americana que impõe sua lei sobre Macondo, cooptando até um dos Buendía como capataz (que depois vira líder sindical), é óbvio o paralelo com a United Fruit Company. Os gringos chegam em Macondo, dominam tudo, cercam umas áreas, movem o rio, cooptam todo o aparato institucional, e, quando os trabalhadores se revoltam, eles armam uma emboscada, matam 3000 pessoas, desovam os corpos nos mares e reescrevem a história de modo que os macondinos ficam achando que os trabalhadores só foram embora mesmo. E o mais surreal é que o massacre que GCM descreve é quase tintim por tintim o Masacre de las bananeras na Colômbia, em 1928. No livro, é mais um grande tópico sobre a memória. O coronel Aureliano acaba tornando-se só uma memória distante, e há quem creia que seu nome é só o nome de uma rua, enquanto outros creem que ele seja uma figura fantástica criada pelo governo conservador para justificar a matança de liberais. Em Macondo, vemos um mundo bíblico, isolado, com sua própria cosmogonia, e acompanhamos o surgimento e declínio dessa família antediluviana até serem devorados pelas formigas e pela miséria, chafurdando no incesto que tanto lhes perseguiu, enquanto o último Buendía consciente (fora seu filho com rabo de porco) lê os pergaminhos de Melquíades. Estes pergaminhos, há décadas inacessíveis, acabam sendo a própria história trágica dos Buendía, mas não creio serem eles o livro em si.
Acho fundamental reforçar dois temas aqui: a solidão e o elitismo. Os Buendía representam a elite latino americana tradicional, e são claramente autocentrados em sua maioria, cada qual com suas obsessões. O patriarca e suas obsessões, seus filhos com guerras ou amantes, e por aí vai. Esta aí a tal solidão do título em carne e osso, e onde finalmente há uma certa mudança, como no casal Aureliano Segundo e Petra Cotes, que realmente parecem se amar (apesar de Petra ser a amante de Aureliano). Esse amor é tão fecundo que literalmente leva os animais a procriarem como nunca, e inspira-os a festejarem e ajudarem terceiros. Não é uma interpretação tão preto no branco, porque Segundo é também fruto de suas obsessões sexuais e gastronômicas. Alguns interpretam que esse retorno ao amor rola no casal final de tia e sobrinho (tô falando), e que onde o amor parecia significar uma esperança para a reconstrução dos Buendía, traz consigo a praga do rabo de porco e a família, bem como o que resta de Macondo depois da chuva de 4 anos, é apagada por um furacão. Essa onda destrutiva, na interpretação, seria talvez a emergência de uma nova ordem de valores que substituiria a ordem anterior (dá pra meter que à época seria a onda socialista).
É um dos melhores livros que já li, dessas leituras que deviam ser parte da estante de todo mundo, capazes talvez de apaixonar novos leitores. É uma delícia de livro, e me incentiva à retormar de forma mais forte, agora que estou de volta ao Brasil, esse contato (que quase não tive) com a verdade sobre o que é ser da América Latina, desencavar sua cultura rica. Ficam aqui duas citações que achei traduzidas num ensaio e que gosto muito:
“José Arcadio Buendía conversou com Prudêncio Aguilar até o amanhecer. Poucas horas depois, devastado pela vigília, entrou na oficina de Aureliano e perguntou: ‘Que dia é hoje?' Aureliano respondeu que era terça-feira. ‘É o que eu pensava', disse José Arcadio Buendía. ‘Mas de repente reparei que continua sendo segunda-feira, como ontem. Olha o céu, olha as paredes, olha as begônias. Hoje também é segunda-feira.' Acostumado com as suas esquisitices, Aureliano não lhe deu importância. No dia seguinte, quarta-feira, José Arcadio Buendía voltou à oficina. ‘Isto é uma desgraça', disse. Olha o ar, ouve o zumbido do sol, igualzinho a ontem e anteontem. Hoje também é segunda-feira.”
“A história da família era uma engrenagem de repetições irreparáveis, uma roda giratória que continuaria dando voltas até a eternidade, se não fosse pelo desgaste progressivo e irremediável do eixo.”
Fiz um combo muito bem pensado que essencialmente abarca toda a época da URSS ao ler esse livro logo depois de Zivago. Nele, a ganhadora do Nobel de Literatura de 2015, a bielorrussa Svetlana esmiuça o fim da URSS, seus efeitos sobre o povo russo e afins, e as repercussões disso na escalada autoritária de Vladimir Putin e os conflitos regionais enfrentados no território. Importantíssimo pontuar que o livro é escrito antes da tomada da Crimeia e afins. De certa forma, a sensação é de uma espécie de crescendo, um povo que perde quase da noite pro dia as esperanças e ideais que motivaram os protestos dos anos 90 ou sua adesão ao socialismo soviético e culmina em uma onda de pobreza, terror e autoritarismo, e depois em sangrentas e infinitas guerras, vide Ucrânia agora.
Apesar do livro ser fantástico e muito bom de ler, é um pouco complexo argumentar que ele é propriamente bem escrito, já que se trata de um livro de entrevistas e histórias gravadas dos outros, com pouca coisa autoral diretamente. Ela editou e escolheu bem, conseguiu ir na alma das pessoas e nos mostrar um panorama muito foda, então porra, excelente escritora. Em suma, quanto mais você lê, mais a queda da URSS do jeito que foi é extremamente surpreendente, especialmente quando comparado com regimes atuais que parecem menos unânimes e mais financeiramente frágeis. Aos poucos, com muito menos guerra civil do que se esperava, surge a Rússia. Naturalmente, a transição foi extremamente cruel, e muitos se viram à deriva, tendo dedicado-se ao projeto socialista por toda a sua vida e de repente sendo postos numa economia de mercado disfuncional, com muito pouco auxílio. A percepção de terem sido saqueados não pode ser lida como mera paranoia anti-liberalismo econômico ou coisa do tipo, porque é ponto pacífico que as oligarquias dominaram e dominam a Rússia desde então, fazendo uso de violência para tal. Gangues e bandidos dominam os relatos, e as promessas de prosperidade econômica são gradativamente vistas como ilusões baratas. Sente-se o ressentimento de que a mudança almejada por muitos foi vender o país pra poder comprar mais tipos de comida e livros. Mesmo os que torciam por mudança não eram unânimes em querer a queda da URSS, e sim queriam um ‘socialismo bonzinho', mais humano, conforme descobriam na abertura de arquivos toda a extensão de crimes contra a humanidade que o regime perpetrava. Muitos citam uma expectativa de julgamento de Nuremberg contra a cúpula soviética, o que basicamente não se materializou. Um dos relatos, de uma funcionária de baixo escalão duma seção distrital do partido, inclusive mostra esse ressentimento anticomunista na veia: invadem o prédio onde ela trabalha, a ameaçam, e os que antes tinham orgulho de serem filiados devolvem suas carteirinhas. Escorraçada, ela não consegue entender como podem crer que ela tinha os privilégios que a elite comunista tinha, e chegam a ameaçá-la com essa onda de que Nuremberg 2.0 viria aí. Talvez aí comece parte do problema: o aparato estatal de tortura, a KGB e afins, simplesmente transiciona com tranquilidade. Hoje a gente sabe que a FSB é herdeira direta, e formou ninguém menos que Vladimir Putin. Alguns historiadores lançam essa tese de que a Rússia na realidade é um país dominado por essa elite de segurança, e não propriamente pelas forças armadas.
Assim, o socialismo caí, as repúblicas vão se formando, e temos um povo desiludido, escorraçado, cujos valores primordiais sempre foram comunitários e mais simples, voltados pra essa concepção soviética de viver. De repente, seu país se torna uma oligarquia; seus ideais, piadas, e todos de repente tem que ser anticomunistas. Os mais fervorosos pró-URSS que sobram parecem ser idosos e militares, e a geração nova fica entre perdida e ressentida. Lembro bem que o Evit me disse isso, que quem é anti Putin vota em qualquer um, menos nos comunistas, e acho que dá pra entender essa extrema perda de fé. O interessante, porém, é que certos valores de pátria grande permanecem até hoje, e isso você vê no discurso expansionista do Putin que justifica as inúmeras intervenções. As repúblicas que se estabeleceram são em grande parte frágeis, propensas à violência interna, conflitos étnicos e afins que advém da mistureba soviética que antes imperava. Quando lemos o relato da armênia que nasceu no Azerbaijão, ela explicita isso: antes, eram todos soviéticos, e de repente tá todo mundo se rotulando e se matando. Ela, de casamento misto, é ameaçada pela família de seu noivo, ele é deserdado, perdem a casa, o inferno se impõe. A tradição sangrenta russa é uma espécie de catalisador dum pensamento bastante fatalista: não se pode torcer que a democracia surja dum povo que jamais foi democrático, segundo vários dos entrevistados. Era leviano pensar que o que eles chamam de povo dependente de ordens, propósitos, guerra e sangue de repente possa resolver tudo como na União Européia, por mais que esse seja o desejo de parte da juventude (Maidan na Ucrânia é talvez uma demonstração disso). Em certo sentido, talvez já fosse possível vislumbrar de longe o que vinha, porque já vimos o que ocorreu com um regime caindo e deixando todo mundo em péssimas condições lá nos idos de 33.
E nesse ressentimento todo, nessa crueza de mistura étnica, de imigrantes vindo em massa pra Moscou e Rússia no geral (afinal, se com a URSS Moscou era melhor que o Tadjiquistão, imagina com a queda), de perda de propósito, consegue-se vislumbrar o que tanto se fala: ‘a Rússia precisa de um tsar, um novo Stálin, ele vai voltar': Vladimir Putin.
Há uma chance de que o timing de leitura desse livro não tenha sido dos melhores. As primeiras semanas de Fevereiro trouxeram uma certa falta de foco e noites mal dormidas, possivelmente por desequilíbrio da tireóide. Isso, acoplado à minha incapacidade de ter qualquer espécie de guia próprio de personagens, certamente não ajudou. É um livro russo, daqueles bem massivos com vários personagens de nomes facilmente confundíveis, e tentar ler ele no seco é muito difícil. Por mais que eu entenda como patronímicos funcionam, não os torna mais fáceis de memorizar, e aqui cabe até uma tese sobre como nomes em línguas que não somos absolutamente fluentes talvez sejam mais fáceis de misturar? Eu sinto a mesma coisa vendo coisas em japonês, e eu sinto que pro público russo é mais suave (até porque eles sabem que Tânia = Tatiana).
De todo modo, Doutor Jivago foi publicado nos anos 50 na Itália, porque a União Soviética enxergou no livro uma CLARÍSSIMA afronta aos ideais soviéticos. O livro foi parte de todo um cabo de guerra ideológico, sendo distribuído pela CIA e gerando consequências graves para o autor, que tentou recusar o Nobel que recebeu em 58. Consta em minha edição que, apesar de publicado tardiamente e citar a Segunda Guerra, o livro na verdade foi sendo gestado e escrito já nos 20-30, e acaba sendo ele mesmo uma enorme epopéia da Revolução Russa. O livro pega desde a guerra russo-japonesa em 1904, passando pela revolução, guerra civil, expurgos, stalinismo, e tudo isso com uma visão que se não era claramente crítica como fez Orwell, no mínimo não fazia questão de esconder os destroços deixados no caminho. O próprio protagonista, inicialmente simpático aos bolcheviques e entusiasmado com a revolução, dela torna-se grande vítima, sendo forçado a mudar-se, preso, feito de prisioneiro dos partisans e por aí vai. Aí que entra toda a óbvia vontade ocidental de instrumentalizar o livro: era um russo falando mal da URSS com uma ampla visão de todo o processo revolucionário. A violência soviética é claramente exposta, e a tendência da extremização de muitos dos revolucionários, para então serem descartados ao regime, é de fato muito marcante. O hindsight óbvio que temos de onde tudo deságua não nos impede de simpatizamos com o entusiasmo inicial e posteriormente nos compadecermos conforme o livro torna-se uma sucessão de tragédias e labirintos sangrentos.
Ainda assim, sem esse enorme contexto histórico, temos uma trama que depende demasiadamente de coincidências. Fulanos que se reencontram em cidades completamente aleatórias, no meio dos deslocamentos, e vão morar na mesma casa que sicrano morou há 30 anos, e isso foi uma grande crítica à Pasternak. Isso pode ter sido uma espécie de contraponto ao realismo socialista que era o estilo meio que imposto à época, e enfatiza o caos do período, mas ainda assim é um pouco DEMAIS pra mim. A vastidão da Rússia deve funcionar bem nas descrições, mas eu infelizmente sou um ser de limitadíssima imagética mental e não consigo visualizar terreno descrito. Juro que tento. E ao mesmo tempo eu senti uma certa secura na descrição dos personagens em si, em sua psicologia. Senti que muito era dito sobre quem eles eram sem mostrar, mesmo Jivago e seus pensamentos originais. Curioso pra ver como fica o filme nisso, que parece ter focado demais na história de amor dele e sua segunda mulher, Lara, que acaba servindo com ele na guerra e era mulher de seu amigo/conhecido Pacha, que acaba ele virando uma lenda viva da revolução e afins. Ou eu que, como mencionei, li esse troço na época errada e não fui embebido pelo livro como outros. Vai saber.
Não sei se é a minha idade ou eu que estou me tornando mais esquisito, porque quando eu tentei ler Dom Quixote pela primeira vez, eu achei chato, sem graça e pastelão demais. Pensei que não tinha condição de na era moderna desse humor referencial e nonsense de sei lá, Sonic Judeu, ler comédias antigas. E eu tenho rido desses livros desde que retentei Quixote, e ri legal com esse aqui. Não é aquela risada franca como em muita coisa, mas tipo, é riso, nem chega a ser só sopradinha de nariz não, e isso parece bom, apesar de ser uma sensação estranha de estar ficando menos jovem e descolado, se é que isso faz algum sentido.
De todo modo, esse é mais um dos 1001 livros, a eterna saga. A edição que li, da Unicamp, é muito muito foda, e dá um contexto que de tão bem dado, você sente falta dele em quase qualquer livro ou clássico, indo fundo na tradição crítica, nos objetivos do autor, etc. Não que o autor mesmo não tenha alguma clareza, porque em vários de seus capítulos ele literalmente para pra dialogar com o leitor, estabelecendo uma genealogia entre os grandes clássicos e sua obra. Aparentemente, existe um texto cômico épico perdido que seria o equivalente da Ilíada e afins para o humor, e isso seria como que a pedra de toque do gênero. Épico não precisa de rima pra ser épico, só pra ser poesia, e daí Joseph Andrews é clássico se lidar bem com seu humor. Não deve ser burlesco, mas sim enfatizar o ridículo, que nas palavras do autor é basicamente gente vaidosa ou hipócrita, e assim o livro já parte da premissa de ser uma crítica de costumes. Some-se também a referência de que Joseph seria irmão de Pamela, protagonista do famosíssimo romance epistolar de mesmo nome, e aí você já vê o livro imerso nesse caldo cultural de seu tempo. Pamela, que eu ainda não li, é sobre uma criada que resiste às investidas de seu patrão até que ele se case com ela, sendo então grande exemplo de virtude. Como o romance é inteiramente epistolar, fica a vibe de ‘olha só ela tá sendo bandida e se fazendo de virtuosa, isso incentiva os criados etc', e aí Fielding chega a fazer uma paródia clara onde ele arranja mais cartas que se passam no universo do livro e denuncia os males do livro. Com Joseph Andrews, a ideia é acabar dando um passo além, e construir algo em cima. Invertendo os gêneros, agora é Joseph que resiste à patroa Lady Booby, que é tia do brother com quem Pamela se casa. Só que Joseph REALMENTE resiste, é demitido, não casa com ela e acabou, o que é um contraponto forte. Booby se torna uma senhora super hipócrita porque alterna entre meter o malho nele e se arrepender, tudo sempre apoiada pela criada Slipslop, que também tem tesão no jovem. A personagem da criada também é claramente ridícula, sempre tentando pagar de braba e rebuscando vocabulário sem ter conhecimento, cometendo portanto vários erros e se colocando acima dos demais criados e do próprio Joseph. A outra parada fundamental é que Abraham Adams, mencionado no título completo, é o verdadeiro personagem principal da história. Um pastor super ético, ele é tão bom que chega a ser ingênuo, e suas atitudes acabam sendo o contraste fundamental para expor a corrupção de inúmeros personagens nas desventuras que eles se metem, à maneira meio Dom Quixote (o livro tem inspiração explícita nisso). Inclusive, da maneira que ele mesmo repete à exaustão o mote de ser caridoso, de amar o próximo, mesmo não tendo um tostão, parece ser um veículo pro autor enfatizar sua visão cristã, posto que na época tinha gente falando que bastava a fé, e caridade era meio qualquer coisa. Adams chega até a discutir com outros membros da igreja, o que parece ser a crítica do autor de que o próprio clero estava fazendo por onde merecer o afastamento e repúdio recente do público, o que seria prejudicial pra fé.
No fim, Joseph acaba podendo se casar com sua amada Fanny, que só aparece bem tardiamente no livro e vira companheira de aventuras dele e de Adams, e aí Fielding usa um clichê para subverter um ‘problema' em Pamela. Neste, a protagonista é virtuosa por nascimento, sem nenhum twist comum de no fim ser filha de um fidalgo ou coisa do tipo, e isso era meio subversivo pro Fielding, ele mesmo de boa família. Então ao fim, Joseph é na verdade filho de um cara poderoso que até é usado no meio do livro para contar uma história bem longa sobre a corrupção em Londres e afins, salvando a pele dessa tese esdrúxula de ser bem nascido.
Primeiro livrinho do ano, tamo como? Voando, filho, esquece. Alguém descreveu esse autor como sendo um cara que é muito bom na escrita, mas que o plot em si ele falha, e acho que isso é uma boa explicação pra esse livro. Tipo, a história começa já no flashback de James Dyer, o homem que não sentia dor ou prazer. O cara já tá morto, já tem umas historinhas sobre como ele foi imunizar a imperadora da Rússia, era um freakshow, etc, então meio que a história só vai caindo em cima do leitor. Além disso, de fato é foda de você empatizar com um cara que sente absolutamente nada, e portanto você só vai seguindo o livro de forma apática. E talvez seja esse o ponto meio que meta narrativo, né, o livro é pra ser uma exploração narrativa do que é a apatia absoluta, e apresenta essa tese de que a ausência completa de dor e prazer levaria à psicopatia e à eficiência robótica, porém naturalmente sem qualquer espécie de traço humanizador. Nesse ponto, nossa própria falta de empatia, longe de necessariamente defeituosa na narrativa, é uma espécie de meta narrativa? De toda forma, a solução que James mesmo escolhe depois de tudo é realizar o ritual da misteriosa Mary e finalmente passar a sentir, inclusive de forma retroativa, a dor que evitou por anos. Todas as as suas cicatrizes voltam a doer, e ele parece ser incapaz de exercer a medicina como antes, exceto em momentos de extrema necessidade, como ao salvar a vida de um fortão que se exibia publicamente tal como ele muitos anos antes. Talvez até seja essa a questão em aberto: munido de mais tempo e suas emoções, era sim possível alcançar a cura para si mesmo sem com isso abdicar de suas habilidades curativas...
Certo estava o cara da orelha do livro que falou que Carrero escreve com uma fúria grega. Esse livro é uma tetralogia, escrita entre 1988 e 2018, que trata de uma (em termos) família nordestina e seu espelho da decadência da elite da região. Os livros, apesar de bastante distintos entre si, carregam esse mesmo estilo avassalador, e depois eu fui entender que o desconforto que eu sentia no período que estava lendo esse livro não era só sobre meu retorno ao Brasil. De fato, esse livro é pesado, angustiante, e tem umas partes que na minha opinião ficam escatológicas demais. Tipo, é mais de uma vez que alguém trepa com merda perto, vomita, fala em cagar e ver, etc, e não me parece que isso seja realmente necessário pro livro. O autor tem suas obsessões musicais também, o que depois fica claro que é pelo seu passado de tocar sax, e isso fica talvez repetitivo demais ao longo de 600 páginas, todo mundo toca sax meio triste, e por mais que isso talvez seja pra simbolizar que um personagem é duplo do outro, fica chato. Claro que hei de ser justo e lembrar que na verdade, eu li 4 livros num só fôlego como um grande romance, só que a compilação e o prefácio vendem esse conceito, então não é despropositado. Só que claro, 30 anos de escrita em uma só tacada vão ser absorvidos diferentemente.
A podridão da alma humana, a angústia, são revelados com maestria demais nessa grande obra. O decadente herdeiro de engenhos, Ernesto, o rei das pretas, vivia de nariz empinado, andava de fraque, mas financeiramente já tinha ido de arrasta pra cima. Sua fortuna consistia em seu ego e em seu insaciável apetite sexual pela carne negra, tão avassalador que ele coletava seu suor como maneira de garantir uma ereção quando ia pra cama com uma branca. Isso eventualmente falha em seu casamento (o único que ele consegue) com Dolores, que percebe, acha aquilo bizarro, impede ele e basicamente fica montando nele, humilhando-o. Dolores é uma figura bizarra demais, ela é apresentada como uma mulher super calada, na dela, sem grandes motivações e tão apática que é capaz de se impedir de pensar. Ao mesmo tempo, especialmente no terceiro livro, ela seria tão manipuladora que controlaria até os pensamentos de Mat(h)eus, seu filho/neto. Naturalmente, a paranoia dele é totalmente descabida, e provavelmente é o que faz com que ele a assassine em um surto. Só que essa força é demonstrada em como ela acaba por controlar e humilhar Ernesto, mesmo sendo corna o tempo todo. É estranho. O primeiro livro começa com ela chegando toda fodida na tenda do exército religioso criado por seu filho Jeremias, junto de sua ~amiga Sofia e sua irmã (amante?) Raquel, que é puta por vocação. E o último livro, em seu epílogo, é justamente o encadeamento pra chegar nisso, que não é cronologicamente a última ação do livro. Isso porque nos livros 2-3, os Soldados da Pátria já foram extintos, e, bem, Mateus mata Dolores. Tem muita coisa cronologicamente esquisita, e é bastante óbvio que esse não é o ponto. Ernesto e Dolores tem 2 filhos (Jeremias, Raquel) no primeiro livro, aparece um casal incestuoso de irmãos no segundo livro (Leonardo, Ísis) com uma mãe viúva (que não está presa ou procurada, ao contrário de Dolores). O segundo livro inclusive tem Leonardo lendo o primeiro, e os personagens aparecendo (Alvarenga, Raquel, Jeremias), só que ao mesmo tempo, de acordo com o próprio posfácio, Leonardo é tipo o duplo de Jeremias, e também no terceiro livro é dito como se Ísis fosse uma irmã em paralelo (e Jeremias + Ísis = Biba, além de Dolores + Jeremias = Matheus, depende da parte). De toda forma, o incesto toma conta, e isso é até dito por eles, numa fala que ‘a família não depende de ninguém de fora pra nada nem pra isso' ou algo do tipo. Aí tem a Biba, que tenta se matar no segundo livro mas também é molestada por Matheus e na verdade é filha de Jeremias sendo que as idades nem as cronologias batem, e no meio disso tudo você tem o verdadeiro caos social da fome e da miséria, dos meninos de rua e do crime. Você tem também os grupos de extermínio, acobertados pela polícia e auxiliados por Siegfried, o nazista, cujo propósito na estória eu também não sei, porque eu acho que é tudo muito mais sobre sentir do que sobre uma cronologia estrita. Siegfried é violento, estuprador, odeia mulheres, mas ao mesmo tempo ama literatura e é isso que une ele ao casal de irmãos, e enfim, puta que pariu, é uma viagem pelo Recife, pelo sangue e pelo Carnaval (visto em Tangolomango como uma festa onde os brancos pedem perdão aos negros pelas atrocidades cometidas). Mais referências aqui: https://www.uai.com.br/app/noticia/pensar/2018/10/26/noticias-pensar,236315/condenados-a-vida-reune-tetralogia-do-pernambucano-raimundo-carrero.shtml