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A Tolice da Inteligência Brasileira me fez passar raiva por três grandes motivos:
(i) O desrespeito
Convém cobrar o mínimo de respeito ao outro quando se estabelece uma crítica cuja pretensão é o avanço do conhecimento. Não se trata de iconofilia ou algo gênero, mas de criar um diálogo cujo saldo seja positivo, sobretudo se o diálogo se dá entre pares cujo objetivo comum é compreender fenômenos complexos da realidade nacional por motivações presumivelmente honradas.
A questão se torna ainda mais problemática quando consideramos que o objetivo é, tudo indica, o exercício científico. Ora, existe coisa mais anti-científica do que atacar o portador da carta em vez de seu conteúdo? Existe coisa mais absolutamente grosseira do que descer os degraus do bom senso no debate até se rebaixar ao ataque puro e ao ad hominem?
Outrossim, se a ideia é ser dialético, Hegel notava que nenhuma filosofia que se afirmou como tal é completamente falsa - caso contrário não teria conquistado corações e mentes. O que importa saber é ‘como e porque ela se afirmou'.
Contrariando essas considerações, Jessé nega os teóricos que pretende criticar sem qualquer respeito e sem se perguntar quais foram as contribuições positivas de suas teses que as fizeram ser tão respeitadas e cultuadas por tantos e por tanto tempo. Parte desse comportamento pode ser explicado pelas...
(ii) Considerações anacrônicas e interpretações simplesmente erradas dos “clássicos” que pretende criticar
A superficialidade das interpretações é tamanha que soa como se Jessé tivesse lido apenas uma resenha de um graduando no Passei Direto pra cada autor que cita (e aquelas resenhas ruins, feitas no dia anterior à entrega do trabalho ao professor). Exemplos?
A interpretação que Jessé apresenta do “homem cordial”/patrimonialismo ignora completamente o fato de que o tipo estabelecido por Sérgio Buarque está contido em um capítulo cujo miolo aborda a centralidade das relações familiares no contexto de um Brasil cuja formação foi fundamentalmente ditada pela vida no campo (um Brasil agrário). Daí a cordialidade, a familiaridade, a aversão ao formalismo e a consequente contradição com a impessoalidade da burocracia Estatal.
Ignorando isso, Jessé logo afirma que deriva das interpretações da obra do Sérgio Buarque a ideia de que o Estado é inerentemente corrupto e dominado pelo homem cordial e particularista (em contraposição ao virtuosismo do mercado). Ora, o problema é que a questão jamais se coloca dessa maneira em Sérgio Buarque: são as relações familiares, nascidas no campo, os interesses particulares, que permeiam as instituições, nunca o contrário. Nas palavras do Sérgio:
Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente [o Brasil agrário], compreender a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático. [...] A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. É possível acompanhar [...] o predomínio constante das vontades particulares [...]
Dentre os “seguidores” de Buarque que aparentemente teriam se apropriado dessa interpretação, é de Raymundo Faoro que Jessé tenta se ocupar no capítulo seguinte, novamente apresentando a tese de maneira distorcida. Deixo os outros explicarem por mim: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Raymundo-Faoro-versus-Operacao-Lava-Jato/4/41637
Ah, devo dizer que é brutalmente pedestre (pra não dizer burro) achar que o marxismo é economicista pela natureza do método.
(iii) A grande antítese (atrasada)
Não foi o paternalismo que definiu o Brasil, mas sim o escravismo!
Ora, Florestan já disse isso há décadas, mas percebeu que não é só isso: o Brasil é as duas coisas. Agora vem Jessé com lábias de quem inventou a roda, reconhecendo aos trancos a contribuição de Florestan? Não na minha gestão!
Ademais, como disse um professor: “Jessé Confunde patrimonialismo com Capitalismo Monopolista do Estado [ou intervenção do Estado na economia]. O fato do Estado ser central na Brasil, na Alemanha e nos EUA contemporâneos, nem faz estes Estados serem rigorosamente iguais, nem - muito menos - torna-os equivalentes ao Estado de Portugal do século XVI ou da China do século XIX.”
O pior é que, ao meu ver, fica impossível compreender o Golpe de 2016 sem considerar o papel do patrimonialismo e dos entraves ao aprofundamento da revolução burguesa no Brasil. [chama no privado se quiser uma discussão mais aprofundada a respeito]
Considerações Finais
Confesso que a Parte III parece articular concepções relativamente novas pra tentar compreender o Brasil. Vou reler assim que for possível pra ver se convém absorver uma ou outra consideração. Para além disso, A Tolice da Inteligência Brasileira é um livro desrespeitoso que apresenta uma visão distorcida das teses às quais procura se opôr.
Gosto de pensar que Jessé, de fato, não compreendeu o que discute e seu coração está no lugar certo. Precisamos sim de pessoas discutindo o que é o Brasil e propondo novas interpretações. Pretendo ler A Elite do Atraso assim que possível. Infelizmente, termino A Tolice da Inteligência Brasileira profundamente decepcionado.