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Gostei de ter lido o livro anos depois da grande hype que teve! Talvez eu não teria lido sem expectativas como fiz agora (o que não seria problema na verdade, porque o livro é ótimo!).
Ler sobre pessoas que vivem situações completamente diferentes do que você pode vir a viver um dia é uma maneira excelente de aprender, além de aprender muito com o que o autor mostra - a pesquisa foi grande aqui, com direito a glossário e tudo. É bastante informação necessária pra todo mundo. E o melhor de tudo, sem ser pesado. Muito bom!
Tenho bastante coisa para falar sobre esta história, só não sei como. Eu reescrevi essa resenha umas três vezes, porque a cada vez, em algum momento, o texto se tornou mais sobre mim do que sobre o livro – porque apesar de ser uma mulher cis hétero, consegui me identificar com várias situações e pontos que aparecem na história (como as expectativas que os outros têm). Então, antes começar de verdade, lá vão alguns avisos importantes que sempre devem ser lembrados: esta resenha é o reflexo de pensamentos, reflexões e sentimentos suscitados da minha leitura da narrativa. Uma trama sempre irá trazer diferentes pontos e interrogações para diferentes pessoas. Este texto é escrito a partir do meu lugar de fala, ou seja, são as minhas opiniões e expectativas quanto leitora. Preparado? Bom. Vamos lá.
Fiquei de olho neste livro por algum tempo – se não me engano, a primeira resenha que li sobre ele foi em 2015 ou 2016. Achei sua premissa mais do que promissora e fiquei com os dedos cruzados, desejando que alguma editora lançasse sua versão traduzida por aqui para que eu pudesse ler e indicar para pessoas que sei que não leem em inglês. Então a Plataforma 21 lançou essa belezinha e eu estava com muitos livros atrasados para comprá-lo e simplesmente deixá-lo na pilha. Eu esperei o momento certo. Comprei o meu exemplar há quase três semanas e li dois dias depois. E eu gostei. Gostei bastante, ainda que tenha algumas ressalvas – e vou começar por elas, porque você me conhece.
O narrador de Todos, Nenhum. Simplesmente Humano é uma pessoa carismática e genuína, seu nome é Riley. É pela voz de Riley que iremos receber várias informações sobre o que é ser uma pessoa de gênero fluído, como é viver assim, ir à escola e receber os olhares questionadores, lidar com as ansiedades que vêm por tentar se sentir em casa dentro do próprio corpo e com a pressão que a sociedade faz para que seja determinado se uma pessoa é “ele” ou “ela”. Seus sentimentos e vivências abrem a nossa mente porque nos colocam ao seu lado, em seus pensamentos, em seu lugar – e isso e maravilhoso e ao mesmo tempo dolorido, porque ainda que realmente não saibamos em primeira mão como é viver assim, nós sabemos como é. No entanto, em vários momentos da trama senti que não estávamos indo para lugar nenhum. O que quero dizer com isso: acompanhamos Riley na escola nova meio que se enturmando, lidando com as expectativas e pressões de seus pais e encontrando uma causa para lutar. E enquanto isso é muito instrutivo e informativo, principalmente para alguém que nunca teve contato com nenhuma dessa informações, fica aquela sensação de que a história poderia ser mais – porque Riley faz parte daquele tipo de personagem que pode ser amplamente aprofundado e explorado –, mas não há espaço para que aconteça esse mais. Vou explicar.
A história é centrada em Riley e é de Riley todo o trabalho de entreter e encantar o leitor. Se o personagem principal fosse Bec ou Solo, amigos de Riley, eu provavelmente não me sentiria tão envolvida na narrativa – eles estão ali como um suporte para que certos temas, como o bullying na escola, sejam tratados. É a autenticidade de Riley que conquista. É sua linguagem, seus medos, suas ansiedades, sua forma de ver o mundo que faz com que o leitor se conecte com a história. E isso me passou a impressão de que sobrecarregou um único personagem – é claro que Solo tem seus momentos interessantes e Bec brilha em alguns diálogos, mas não é algo que aconteça de forma equilibrada. E isso reflete no enredo. Seu plot não é tão sólido quanto desejado e seus acontecimentos ficam simplesmente sem força diante das informações que são explicadas. Isso quer dizer que a história é ruim? Não. Mas é justamente a expressiva massa de conhecimento que deveria ser melhor conduzida com a trama.
Um ponto que poderia ser mais aprofundado e melhor trabalhado é a relação de Riley com a escrita. Riley posta em um blog (cuja plataforma faz uma paródia com o tumblr) e embora eu tenha amado cada um dos posts e respostas que foram mostrados no decorrer da trama, a repetição expressiva de certos pontos não era necessariamente a melhor forma de nos exemplificar uma e outra vez toda a pressão e ódio que as pessoas espalham para os outros [que muitas vezes nem conhecem]. Fiquei com a impressão de que se houvesse uma variedade de situações maior, mesmo que a mensagem fosse a mesma, o impacto seria diferente.
Outro ponto foi a relação familiar. Ainda que eu entenda que o pai de Riley era um deputado em reeleição e sua mãe aparentasse sentir receio em conversar de verdade sobre o que estava acontecendo com Riley, fiquei com a sensação de que eles poderiam ser uma fonte de diálogos extremamente enriquecedores e que não foram utilizados. Nós realmente não encontramos tantos pais efetivamente participando das histórias em livros YA e neste caso, os dois, ainda que de forma contida, estão ali, presentes e com grande potencial. A visão de que seus pais realmente nunca se importariam em fazer lhe perguntas ou apoiar me parece, hoje, não tão realista quanto a história implica, para mim estava bastante óbvio que eles amavam Riley e apenas não tinham a mínima ideia do que estava acontecendo e que, com conversa e entendimento, iriam apoiar e aceitar sem nenhum julgamento. Como mencionei há pouco, o enredo poderia ser mais aprofundado com melhor desenvolvimento dos pais, e dos amigos de Riley – Bec e Solo.
Como experiência de leitura, Simplesmente Humano é um livro incrível. Este é o primeiro livro que não nos é revelado o gênero do personagem principal e narrador – e este é um dos principais pontos na trama –, e o trabalho do escritor e do tradutor ao fazer com que as marcas de gênero fossem substituídas e não utilizadas é realmente instigante. No começo não saber se quem nos conta a história é um menino ou uma menina é um detalhe diferente, que destoa do restante dos romances que temos contato, mas com o passar do tempo percebemos que isso realmente não importa (nós ficamos presos nas perguntas erradas e esse é uma das descobertas que fazemos durante a leitura).
“O mundo não é binário. Nem tudo é preto e branco, sim ou não. Às vezes não é um interruptor, mas um ponteiro. E nem é um ponteiro que você consegue controlar; ele vira sem sua permissão ou aprovação.”